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Eu às vezes uso frases minhas e esta é uma delas. Mas estou agora a pensar num sermão do Padre António Vieira que lançou magnífica maldição sobre a humanidade: “Por aquilo que fizeram, muitos serão condenados. Pelo que não fizeram, todos.”
Isto aplica-se a tanta coisa, sempre: os que torcem as tripas com a invasão da Ucrânia pela Rússia, mas já não se comovem com o genocídio de crianças em Gaza; os que ganham úlceras com a morte à fome e bomba dos palestinianos exterminados na sua terra, mas justificam o assassino em massa Putin e desprezam Zelensky, que luta pela democracia e a liberdade no seu país. Já usei duas imagens com problemas no aparelho digestivo, ainda não disse refluxos esofágicos. Há quem aceite metade dos factos e despreze a outra, como se não fossem duas faces da miséria desta época.
Bem, até o jesuíta Padre António Vieira caiu nos mesmos, digamos, pecados que denunciava, defendendo a escravatura dos negros como vontade de Deus, e a imposição da crença católica aos ameríndios do Brasil, tratados como crianças selvagens, perseguindo os que não a queriam. O que leva a outra frase: “Os meus princípios são estes. Se não gostarem... arranjo outros.” É do grande Marx, o Groucho. Juntaram-se, nesta semana de eleições, os pilarzinhos F que herdámos do Salazarismo: futebol, Fátima e um fado popularucho interpretado por um candidato tão mentiroso que até com os ácidos a ressaltarem à boca mentiu, inventando que ouviu ameaças nos corredores do hospital. O senhor 30 metros quadrados é um pastorinho da mentira, é capaz de ver ciganos em cima de uma azinheira a conspirar.
Agora lembrei-me da história de Cristino, numa semana de derby. Foi há imensos anos, mas metia um Benfica-Sporting muito contestado e urgências de estômago e de verdade. Cristino justificava o espancamento da mulher e da filha.
– ... a televisão estava muito alta, e eu estava quente e elas
começaram a mandar vir...
– O que quer dizer com “estava quente”?, perguntou a juíza.
– Devia estar com um copito. Quando uma pessoa está quente, às vezes escorrega.
A discussão começou por motivos frívolos que se conhecem em Portugal: uma única televisão no lar, um jogo de futebol. Cristino entrou na sala, a mexer no bigode. Ali estavam a sua mulher e a filha de 16 anos, Cláudia, que acompanhava um Benfica-Sporting que acabou por ser um jogo importantíssimo: o Sporting chegou ao dois-zero, com golos de lordanov e Balakov, mas Dimas reduziu para os encarnados. Depois, Caniggia foi expulso num flagrante erro do árbitro: mostrou-lhe o cartão amarelo e, logo a seguir, o vermelho, sem sequer se aperceber de que o argentino ainda não sofrera um primeiro amarelo para mostrar o vermelho por acumulação. O Benfica protestou o jogo (para nada). Nessa noite o estádio da Luz estava em chamas quando Cristino gritou:
– Apaga essa merda da televisão!
– Ó pai, deixa-me ver o jogo, está quase a acabar.
– Desliga essa merda, já disse!
– Mas eu tenho o direito de ver o futebol!
Cláudia sentiu o cheiro azedo da boca do pai e desligou a televisão. Mas estava irritada, aquilo era estúpido e injusto, e olhou para ele ao sair para ir chorar para o quarto.
– Pegou-me num braço e gritou “tu não me olhes com esses olhos!”, contou Cláudia no tribunal. “Ó pai, eu não estou a olhar para si!”
Cristino bateu na filha e ia rebentar-lhe uma jarra de porcelana na cara, quando a mãe se pôs à frente. Ficou com as mãos cortadas.
– Se lhe acerta, matava a filha.
Cristino tinha negado à juíza que tivesse por hábito bater na família. Mas a mulher disse que batia há tantos anos como o casamento: 30. Sempre jurava não voltar à violência. Nesse dia de Maio foi ao frigorífico, tirou um pacote e encheu um copo de leite.
– À vossa saúde!, disse ele, bebeu, e logo caiu no chão.
“Ficou a espernear”, levaram-no para o hospital. Não era leite mas veneno contra o escaravelho da batata, o clássico 605 Forte.
Meses depois ali estava ele, vivo, a dizer o que lhe apetecia.
Comecei com uma frase minha, acabo com outra: se não lhes mentires, como queres que acreditem em ti?
O autor escreve segundo a antiga ortografia