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Na longa colecção de inferninhos da vida familiar a que assisti, alguns deixaram um dia de ser privados, outros subiram as escadas da violência até se transformarem em crime público. O caso da dona Maria e da filha Luísa juntou três problemas grandes: a demência da mãe, a esquizofrenia da filha e a solidão das duas. Uma cozinha imunda e com ratos, uma casa em disputa, uma denúncia de sova na mãe. A voluntária que acompanhou a dona Maria estava ainda a tentar perceber o que viu, chamada como testemunha no tribunal.
- Foi uma situação um bocado confrangedora. Uma vezes a dona Maria mostrava-se preocupada, outras vezes ficava desligada, outras vezes dizia “ela vai-me matar”... e isso!
- Ia-lhe perguntar os nomes de que se recorda..., disse-lhe a procuradora.
- Basicamente eram insultos.
- Ouviu alguma vez a expressão “foda-se”?
- Sim, elas estavam em guerra.
A filha Luzia tinha um discurso: toda a gente se metia no assunto e por isso é que a vida estava mal.
- Tinha também a ver com a casa?
- Ela justificava, até pelo processo que teve em tribunal, que os vizinhos estava contra ela. Ouvia-se dizer que a casa era da mãe, a dona Maria, e a Luzia dizia que a casa era dela. As coisas só abrandaram quando ela deixou de ir lá a casa. A mãe também era uma pessoa de idade e tinha uma certa descompensação. Uma vez, a senhora estava a comer uma sopa. A filha entrou e foi tomar café... sem falar com ela... nunca falavam. E a mãe começou a dizer que se sentia mal e que era “graças a vocês”: nós tínhamos “permitido que a minha filha metesse veneno na sopa”. Já era muito grave, eram situações muito ambíguas.
A idosa tinha medo da filha, mas não era só isso.
- A dona Maria também estava naquele estado em que estava sempre mal com toda a gente. Ora amava, ora odiava. Às vezes também desculpava a filha. Eu nem sabia que a senhora tinha falecido. Soube agora.
O tribunal discutia agora os insultos, o cabra para aqui, o vai mas é para ali e para acolá.
- E dizer que a mãe não prestava?, continuou a procuradora.
- Isso também. A mãe dizia-nos sempre: “ela não é boa filha”. Eu dizia-lhe muitas vezes: não ande com tanto dinheiro! “Não, não, tenho de andar, que a minha filha rouba-me”. Uma vez, eu fui lá perguntar-lhe se queria ir almoçar. Mas ela disse que a filha a deixara trancada, “deixou-me o portão fechado e não posso ir”. Foi quando disse que há já três dias que não comia, que tinha fome. Mas a dona Luzia também me disse que várias vezes lhe tinha deixado sopa e que, se não comia, era porque não queria, que a mãe estava a mentir.
No banco dos réus, agarrando com os ganchos dos dedos as bordas do casaco, balançando os cabelos oleosos, tristes, paranóicos, a filha Luísa aguardava. A casa é agora sua, mas ainda estará cheia de móveis partidos, objectos pelo chão, e uma cozinha, como disse a voluntária, que não era “nem pouco mais ou menos” utilizável. Só o quarto onde a velha senhora se refugiava se mostrava dantes arrumado, limpo.
A mãe está morta, a filha que se diz a si mesma esquizofrénica é julgada por violência doméstica e anda o mundo como anda, como sempre andou e, receio bem, sempre andará.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia