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Da acção imediata para o pensamento, creio que o Abel se orgulha da sua revolução pessoal. Pensamento primeiro, murro depois. E só se tiver que ser. Em três anos decidiu a prioridade e pôs os dias em ordem. Ele contou que tinha 18 anos e que o passeio ao centro comercial o desequilibrou. Para ser honesto, como ele o foi diante da juíza, embriagou-se no segundo andar, nas comidas, e a namorada achou mal.
- Tive uma discussão com a minha namorada e depois veio lá o segurança, eu empurrei-o e caiu.
O auto de detenção descreve os factos que contam. O tempo de uma vida são instantes encadeados, mas muitos. É que depois do segurança veio um polícia, e depois do polícia um carro cheio de polícias, e depois do carro cheio de polícias a esquadra de Benfica. Abel, o servente de pedreiro, parecia enorme e verde e desfraldado como o temível monstro Hulk quando o enervam. Ele deitava abaixo o centro Colombo se acertasse no pilar-mestre, ainda bem que não lho mostraram.
“O agente foi agredido com várias cabeçadas, atingindo-o na testa e no ombro”, está no relatório. Alguém chamou a polícia para ajudar o guarda, mas Abel deu tais murros e pontapés no carro-patrulha, deixou-lhe tanta amolgadela, que a despesa foi quase um ordenado. Apesar de o conserto ter sido nas garagens da PSP, só se pagou a chapa porque a mão-de-obra é da corporação, explicou um polícia no julgamento, límpido.
- E com a sua namorada?, perguntou a juíza.
Abel levantou os olhos do chão. Tinha uns braços grossos, arranhados pelas lascas das tábuas dos andaimes, e com pingas cinzentas do cimento, e tinha uma voz calma e eu achei-o um bom rapaz. Ele veio para Portugal quando tinha sete anos, ainda se lembra bem de Cabo Verde.
- Com a sua namorada também estava à luta ou era só discussão verbal?
- Era quase.
A juíza viu que este era um quase que é todo.
- Se o senhor estava a bater numa mulher, se calhar foi por isso que o segurança interveio, não acha?
E naquela sala, sentado muito perto do lugar de Abel, estava outro rapaz que bateu com um pau no seu maior amigo. Deu-lhe na cabeça quando o outro o tentava esfaquear, abriu-lhe a testa no bairro de barracas.
- Eu abri a porta e vi que ele me ia dar com a navalha na barriga e fui buscar o pau que está sempre ali ao meu lado da cama, encostado e em pé, que é para me proteger.
A juíza perguntou-lhe como é que o outro não tinha conseguido entrar com um empurrão e o rapaz explicou que só abrira um pouco, e puxara logo com força, porque:
- A porta da minha barraca abre para fora.
As portas da barracas de tábuas e zinco abrem para fora, as das casas verdadeiras para dentro. Numas custa mais entrar, noutras sair. Numas dorme-se com um pau levantado ao lado da cama. Tinha sido uma discussão de dinheiro e droga, eram bons amigos mas isso terminara. Ele esteve em tratamento e converteu-se a Cristo, que o salvou. Agora faz trabalho voluntário com outros que precisam. Perdoou o amigo e gostava que ele o perdoasse. Não sabe se Cristo também o salvou, porque o amigo ofendido nem apareceu no julgamento.
- Não sei nada dele.
Quanto a Abel, que bateu na namorada, num segurança e na PSP numa meia hora louca, fez o resumo das suas experiências.
- Na semana passada, fui julgado por tentativa de furto de carro. Vou pagar multa. A sentença foi ontem.
- E hoje está aqui.…
Tinha então 18 anos e agia logo, não pensava nas coisas:
- Quer isso dizer que agora não fazia?
- Agora não.
O autor escreve segundo a antiga ortografia