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Bruno, nascido cá mas natural de Cabo Verde, - assim se apresentou ele - carrapito preto, blusão preto, pele negra, preso em Alcoentre. Luís, pai de identidade desconhecida - assim ele se apresentou - camisola verde azeitona, cara branca redonda, preso na penitenciária do Montijo. Mas a verdadeira apresentação foi a forma como os fizeram entrar na sala de julgamentos. O guarda prisional mais antigo espreitou e disse à juíza que a sala não tinha condições de segurança e, com licença, arrastou cadeiras para criar, à minha frente (depois de me estudar criticamente), uma alamedazinha para os dois cadastrados.
- Agora já está melhor, meretíssima.
Entrou Luís, depois Bruno, os punhos em oração por culpa das algemas, abertas então por guardas de chavinha, como se desembargassem duas encomendas na alfândega do crime. Ali ficaram os guardas de azul, os braços cruzados, pistolas no coldre, tapando as saídas. Estes homens cansados no banco dos réus eram perigosos. O que nos esperava? Uma história miserável desde o início dos tempos: assaltaram uma velhinha.
Ela não era pobre mas, desde os 75 anos, nunca mais teve paz. Durante muito tempo, não conseguia ir à rua, entrar numa garagem, conduzir. Foi seguida desde o IKEA ou o Lidl, fora às compras de carro. Entraram na garagem atrás dela, no Parque das Nações. A porta do carro abriu-se por fora, pensou que era o irmão a pregar um susto:
- Isto é um assalto, silêncio. Feche a boca ou dou-lhe um tiro, mato-a!, gritou Bruno, dizia a acusação.
Os anéis, colares, pulseiras de ouro, a história da sua vida em jóias desapareceu para sempre. Bruno, cabo-verdiano-português, negou:
- Nesses crimes eu encontrava-me a trabalhar com a minha mulher num café em Caxias. A única vez que estive com o Luís foi quando ele estava sem ter onde ficar. Eu dava-lhe de comer, dormia no meu carro, tomava banho na minha casa. Não cometi esse crime.
Na sua vez de falar, Luís, o filho de incógnito, concordou:
- Antes de mais, queria pedir desculpa à vítima. Mas não era este indivíduo aqui. Estava eu e o Baldé. Não sei onde está esse. Mas quero pedir desculpa à senhora. Eu fui só à carteira, quando fui à porta do carro, vi ele com um anel e a
pulseira. Depois ele foi no carro deixar-me à porta do Bruno. Era lá que eu tomava banho e fazia as minhas necessidades.
Um crime desgraçado que trazia um lastro miserável.
- Eu estava fugitivo desse processo de tentativa de homicídio em Almada, eu não tinha para onde ir. Fiquei em casa do Bruno dois dias, mas já estava a dar confusão com a mulher. Então surgiu o Baldé com um carro e veio com a conversa e não sei quê, vamos dar uma volta para a gente se orientar.
No fim, só ficou com 15 euros, disse Luís, o outro, o tal Baldé, é que levara as jóias.
- Eu ia fazer o quê? Estava perdido na vida, a dormir pelos cantos. Estou arrependido desde o primeiro dia, mas pronto a acartar com as consequências. Tenho pessoas idosas na família e não gostava que passassem pelo mesmo que eu fiz.
Quando a vítima entrou, não pôde identificá-los. Primeiro, porque eles usaram capuzes no assalto, depois, porque está quase cega.
- Eu nem vejo a senhora juíza, desculpe.
Mas há imagens da garagem, há a investigação policial, e estes homens até estão presos por outros crimes. A senhora chorava e a juíza mandou sair os dois perigosos. Desapareceram-lhe todas as jóias (noivado, casamento, bodas disto e daquilo). Entrara a cantar na garagem uma canção infantil, pensara que o carro que vinha atrás era o vizinho. E quando a porta do seu carro se abriu de repente, julgou que era brincadeira do irmão.
Cale a boca ou leva um tiro.
O autor escreve segundo a antiga ortografia