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Dois ladrões, não, três alegados ladrões de carros, pois falta aqui “um indivíduo cuja identidade não foi possível apurar”, que era precisamente o homem que seguia ao volante do carro roubado. O “indivíduo cuja identidade não foi possível apurar” foi quem, ao tentar escapar da polícia, bateu noutro carro estacionado no parque de hipermercado nas fronteiras da Grande Lisboa, em Alverca do Ribatejo, aquele que saltou do volante e foi o único a fugir a pé, enquanto a polícia capturava o segundo homem, que ia no lugar do pendura, e a mulher que saltava da porta de trás, mas tantas vezes surgiu, na sentença do tribunal, a frase “um indivíduo cuja identidade não se conseguiu apurar” que até se pode imaginar que o nome completo deste desaparecido no cartão de cidadão será: “indivíduo cuja identidade não se conseguiu apurar.”
Os outros dois têm nomes comuns e estão agora no banco dos réus: Nádia, que nasceu no Leste da Europa, e Bruno, que nasceu no Oeste de Lisboa. É o momento da sentença e estão nervosos, acabaram de chegar algemados cada um da sua prisão, ela de Tires, ele de Pinheiro da Cruz.
E, de súbito, um raio ilumina o cabelo ruivo de Nádia e um sorriso seco e confiante rasga a barba de Bruno. Poucas vezes vi alegados ladrões de carros tão felizes na chamada vida. É que os dois acabam de ser absolvidos “in dubio pro reo”, na dúvida absolve-se o réu, e vão livrar-se de nova mancha no longo cadastro de furtos e assaltos, e de mais anos de cadeia para cumprir. São os dois toxicodependentes, em maior ou menor grau de recuperação, e os dois são casados mas não um com o outro, o marido de Nádia está preso noutro estabelecimento e a filha de ambos voltou para os avós, no estrangeiro, e os filhos de Bruno estão com a mãe, enfim, um cacharolete de desgraças, cacharolete é a palavra portuguesa para cocktail, caso não saibam, e este cocktail mete álcool, cocaína, heroína e, no cimo, uma azeitona da sorte.
Porque não se provou que Nádia e Bruno tivessem roubado o carro roubado em que seguiam. Que houvesse nexo causal. Faltou apanhar o “indivíduo cuja identidade não foi possível apurar.”
O carro era um Kia de 45 mil euros, furtado a uma senhora à porta da sua casa, até que, dois dias depois, um carro da polícia topou o veículo no parque de estacionamento do Auchan, este se pôs em fuga e logo se estampou contra outro carro. Mas como o condutor conseguiu fugir, quando chegou ao julgamento Bruno ficou calado e Nádia disse que apenas tinham aceitado a boleia casual de um desconhecido, o famoso “indivíduo cuja identidade não foi possível apurar” e “desconhecendo também ambos a origem do veículo”.
Escreveu o juiz na sentença: “Sendo a liberdade de apreciação da prova, no fundo, uma liberdade para um dever ou poder-dever - dever de perseguir idealmente a verdade material -, tem a mesma de ser compatibilizada com as garantias de defesa constitucionalmente prevenidas, pois não é admissível a busca da verdade a todo o custo.”
Pois eu, se algum dia me desse para furtar automóveis, chegava-me ao meu futuro cúmplice cuja identidade não fosse possível apurar e perguntava-lhe:
- Então e que qualificações tens para roubar carros?
- Faço ligações directas e sou um ás do volante.
- Hum... Ah sim? E sabes correr, dar corda aos sapatos, aos butes, aos calcantes a fugir da polícia? Quanto é que levas dos zero ao cem a correr os cem metros a pé?
O autor escreve segundo a antiga ortografia