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Largos e belos, mas perigosos, são os caminhos da amizade. Imagino que cada um saberá, por experiência, o que isto quer dizer. Maria e Bruna foram acusadas, pela vizinha Sara, de graves agressões em casa dela, no prédio de todas.
Segundo a acusação, Maria puxou os cabelos, deu chapadas na vizinha Sara. Quanto a Bruna, a sua filha, chegou pelas costas e apertou o pescoço de Sara com a técnica mata-leão, a dobra do braço, o cotovelo em “v”, cortando-lhe o ar. Finalmente, no meio da luta, as duas terão atirado à vítima garrafas que a feriram no pescoço.
- O marido da Sara estava a fumar um cigarro à porta, começou Maria, choramingando.
- O que é que lá foi fazer?
- Eu fui lá para pedir à Sara para não bater à minha filha, a Bruna. Nós somos muito amigas. Era muito cedo e todas as crianças da Sara estavam a dormir.
- Eram 9h10, não era assim tão cedo, disse a juíza.
- Mas foi muito mais cedo! O marido disse-me que ela não estava. Depois eu disse que vinha dizer para ela não bater na minha filha. E ele então disse que ela estava lá dentro, para eu entrar. Mas eu não entrei, dessa vez não entrei.
A juíza não percebia nada, só que era história mal contada.
- Mas a senhora foi lá fazer o quê, exactamente?
- Isto tinha começado antes. A Sara já tinha mandado a irmã dela subir as escadas para dar uma facada na minha filha.
- Mas está a dizer isso como se fosse pedir um bocadinho de sal!
- Era o que a gente costumávamos fazer, sotora, pedir sal! Eu fui porque éramos muito amigos!
- Eu não digo?! Mandaram dar uma facada e são amigos?!
- E somos! E ela respondeu-me: “Não bato na tua filha?! És já tu!” E puxou-me o cabelo e andámos no chão, agarradas à porrada. Eu e ela andávamos as duas que parecíamos malucas. Ela atirou-me garrafas à cabeça, eu protegi-me com o braço e cortei-me! E ele, o marido, estava dentro e fora do apartamento, sem nos separar. E eu não compreendia porque é que não nos separava. E eu não sabia que o meu cérebro podia pensar tão rápido. Porque eu só pensava “porque é que o marido está dentro e fora?” Como éramos amigos, não sei, mas conforme a Bruna entrou, ele puxou-me a mim e atirou-a a ela para cima dela! E aí percebi: eles só estavam à espera da Bruna, era a ela que eles esperavam!
Agora vamos ao motivo desta estranha amizade que pode acabar ao puxão de cabelos, estaladas, estrangulamento mata-leão, facadas, garrafas de vidro pelo ar e tristezas eternas.
Era uma vez o confinamento covid (às vezes parece-me que estou condenado a pena perpétua de ouvir miseráveis consequências judiciais da pandemia). Não se podia ir a lado nenhum, todos os bares do bairro fechados. Mas Sara, a vizinha de Bruna e de Maria, começou a vender bebidas à porta. E servia comidas, cachupas. Era a cantina dos jovens noctívagos. Uma noite, quando estava no seu negócio informal, a vizinha e amiga... amiga, repito, Bruna, desceu a escada e disse-lhe para acabar com o barulho incessante, ou ainda chamava a patrulha da Polícia.
Foi o início de uma bela inimizade. Mal disse a palavra polícia, contou Maria, começaram os problemas.
Ódio muito amigo e para durar, as novas gerações já estão envolvidas de corpo e alma. De súbito, na sua agonia sentimental, Maria contou:
- A certa altura, os filhotes dela, as crianças todas também me bateram. E eu: “olha, batam, se querem bater, batam!”
- Espere lá, agora também há crianças a bater-lhe?!
Ah, pois há, uma delas com um pau, e a mais nova tinha quatro anos quando lhe deu pontapés. Ou seis anos..., baralhou-se Maria. Por isso, virou-se para a filha Bruna:
- Que idade é que tem a tua afilhada?
O autor escreve segundo a antiga ortografia