Helena espera uma casa que não esteja a cair. Logo que entrou na sala de audiências, cambaleando na canadiana de plástico e metal, com um gemido que parecia sair do chão:
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- A senhora está a sentir-se bem?
- Sou cardíaca e posso sofrer morte súbita. Eu fui vítima da violência deste senhor que me roubou tudo!
- D. Maria Helena, tem de ter calma, está bem?
- Eu sofri muito estes anos todos, não aguento mais!, gemia a senhora.
- Senhora D. Helena, tem de perceber uma coisa: neste processo, a senhora é que está a ser acusada.
- Ele tirou-me tudo! Ameaçou-me de morte e tudo!
A velha senhora limpou os olhos com a manga verde do casaco. O cabelo tremia-lhe no pescoço. O julgamento, no entanto, foi rápido. Nunca assisti a tal relâmpago de julgamento. Foi entrar, conversar, alegar, dar sentença e encerrar. Pouco mais de dez minutos esteve a D. Helena a ser julgada. Fossem assim os julgamentos, assim fosse a vida. O ex-marido acusou-a de o atacar num quiosque, com a canadiana, em Novembro de 2020. Crime contra a integridade física simples. No relatório da PSP, um braço com três dias de doença. A PSP estará sempre ligada aos lamentos da D. Helena. Nasceu em 1951, no Porto.
- O meu pai era comandante da PSP mas não me chegou a registar, disse. Olhe eu fiz tudo para criar três filhos sozinha. Considero-me uma grande mulher, uma boa cidadã. Era cozinheira e tratava de doentes acamados.
- Descontei durante 49 anos, mas como me deram uma reforma pequenina... sabe, senhora doutora, eu tive de ir trabalhar com 70 anos porque tinha um filho funcionário que ficou sem o emprego.
E por aí seguia o caso da D. Helena, em círculos fechados de pobreza e azar, que são irmãs.
- A minha casa está a cair. Estou à espera de casa, mas até na Câmara fui... deram-me como morta por haver dois nomes iguais e por duas vezes perdi a casa.
Sobre a acusação do ex-marido:
- Eu fui-me a ela, porque ameaçou-me de morte, ela fez-me assim este sinal.
E o dedo da D. Helena, esticado, correu a perpendicular do pescoço, como navalha que corta a jugular.
- Era a amante dele. Foi a que me tirou a chave da minha casa, me roubou tudo, me insultava, ameaçava de morte, espancaram-me toda a noite e eu fui entre a vida e a morte para o hospital.
- Portanto, a senhora não lhe bateu?
- Não foi a ele. Eu fui-me a ela com a canadiana e abri-lhe assim um bocado o sobrolho.
Na sua casa que cai, a D. Helena vive com o filho de 47 anos, que limpava matas, mas está desempregado. Nunca trouxe dinheiro para casa, "meteu-se com uma vigarista que lhe dizia que era modelo, que era isto, era aquilo, que era rica, tinha dinheiro."
Ali estávamos, neste tribunal moderno, à espera que caíssem mais telhas, paredes, as janelas da D. Helena. Então, a procuradora levantou-se e alegou que, não havendo testemunhas para corroborar a acusação, pedia a absolvição. O advogado da D. Helena achou bem. E a juíza disse que comunicava já a sua decisão pois se até a vítima estava trocada, quem levou com a canadiana foi a outra...
- A senhora foi absolvida, disse a juíza. Muito bom dia, senhora D. Helena.
- Muito bom dia, senhora doutora e felicidades para todos os presentes.
A coxear, a D. Helena voltou para a casa que cai e volta a cair.
*Jornalista