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“Eu partia-lhe uma perna ao meu irmão e ele já não fazia mal”, disse a rir o homem do coração de ouro.
Ouvi a frase na semana passada e não a esqueci, o homem disse muitas outras mas esta fez-me um risco na memória como um canivete na pintura do carro.
O homem estava em Inglaterra a falar pelo vídeo do telemóvel, a depor para o tribunal em Lisboa, e a juíza até lhe pediu que estivesse quieto, que não mexesse a câmara, que não esfregasse a mão na cara, porque num julgamento se pede “uma certa solenidade, para que isto não fique uma espécie de conversa de café.”
No início, a juíza também pedira ao homem no banco dos réus à sua frente, o irmão acusado de violência doméstica contra o pai, que levantasse a cabeça, que deixasse de olhar para baixo: “O senhor parece que está a dormir.”
Boa sorte, doutora juíza... Daí a pouco, o réu, escutando o irmão lá de Inglaterra, descaía a cabeça pois ouvia coisas tão tristes que já ia de maneira que tudo lhe parecia um sonho. E lá de Inglaterra o irmão do coração de ouro esquecia-se de estar quieto e, pelo contrário, andava de um lado para o outro na casa como se fosse um agente imobiliário a mostrar-nos um imóvel à venda... esta é a sala, esta é a cozinha... enquanto nos contava a história toda da família num ramalhete de frases. Vou agora passá-las do meu bloco de notas para esta crónica que lêem:
“Vivíamos juntos até aos 18 anos. Eles os dois ainda vivem juntos, o meu pai e o meu irmão. É uma relação um bocado atribulada, mas eles são iguais um ao outro. O que um faz mal, o outro faz igual. Se o meu irmão é como é, é muito culpa do meu pai.”
“Um bebe uns copos e... o outro bebe uns copos... Faz lembrar aqueles casamentos que andam sempre à bulha.” “O meu pai nunca me contou que ele lhe bateu, senão o meu irmão agora não estava direito. Eu é que decidi ir lá, ele não me pediu.” “O meu pai também não é melhor do que o meu irmão. O meu pai também o ofendia, o meu pai também bebe. Trocavam nomes, ofensas.” “Eu não tiro partido de ninguém, não quero ajudar ninguém. Quero ajudar o tribunal.” “A minha irmã...? Por acaso também não falo com ela. Sei que vive aqui ao pé de mim, em Inglaterra, até posso arranjar o contacto, mas não falo com ela, sei que teve agora um filho. Também não falo há muito tempo com o meu irmão. E com o meu pai também não. Tenho um coração de ouro. Não falo com nenhum mas todos sabem que, se precisarem de mim, vou a correr ajudar.” “Só quero dizer que eu acho que o meu irmão não lhe queria fazer mal, ao meu pai. O meu irmão tem um coração de ouro, só que bebe uns copos e deixa de ter coração de ouro.” “A gente... com 10-11 anos, nós já passávamos a noite inteira a dormir na rua. Nós nunca tivemos educação. O meu pai desaparecia dois, três dias seguidos e nós a dormir na rua.” “Na noite em que isto se passou, eu estava no Alentejo e o meu pai ligou e disse que o meu irmão estava com os copos e que disse que lhe batia e que partia a casa toda. Que o meu irmão o tinha ameaçado. Eu agarrei no carro e fui a correr.”
- Para quê?, perguntou-lhe a juíza.
E cá estava a resposta que decorei, tão assustadora que o homem a disse a rir lá de Inglaterra:
- Eu partia-lhe uma perna ao meu irmão e ele já não fazia mal. Mas o meu pai disse-lhe que eu ia lá e ele fugiu. Não apareceu nem no dia a seguir! Eu ouvi o meu irmão lá atrás a gritar “eu não tenho medo” e essas coisas todas, “diz a ele para vir cá também!”. Mas eu sei que ele é assim também por causa do meu pai. É esta a minha revolta.
Uma família com vários corações de ouro, mas de quantos quilates?
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)