J. G. Ballard, O’Neill e a imigração
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Alguns leitores desta crónica reconhecerão em J. G. Ballard um mestre da ficção científica distópica. Várias obras suas foram adaptadas ao cinema por gente tão distinta quanto Steven Spielberg ou David Cronenberg. Bem menos conhecido que “O império do sol” ou “Crash” é um breve conto paródico intitulado “Billenium”, de 1961. Num futuro impreciso, com cidades sobrepovoadas e à míngua de espaço edificado, o conceito de apartamento é uma memória longínqua. Todo e qualquer compartimento foi fragmentado em cubículos de quatro metros quadrados. O próprio termo “quarto” é apenas um resquício linguístico. Ward, a personagem principal, é invejada por residir num vão de escada com 4,8 m2.
Veio-me isto à memória depois de ler sobre uma grávida a quem algum desalmado cobrava 150 euros mensais para viver num vão de escada, no centro de Lisboa. Mas também aquela homenagem de Alexandre O’Neill aos mineiros chilenos que, nos anos 80, estavam sujeitos à cama-quente: “joga-se o corpo ao sono, mas primeiro,// enxota-se o camarada da cama ainda quente,/ que não há camas, no Chile, pra toda a gente”.
Hoje, em Lisboa e no Porto, nos montados alentejanos e nos vinhedos durienses, dezenas de milhares de pessoas vivem já numa distopia ballardiana ou como os mineiros chilenos nos anos 80. Nesta mesma década, o realojamento de largos milhares de famílias que viviam em barracas foi uma das mais luminosas proezas da democracia portuguesa. É uma dor de alma assistir à reencarnação desse Portugal.
Ao espaventoso crescimento da imigração ontem relatado pela AIMA – mais de um milhão de pessoas face a 2017 – vai corresponder, fatalmente, o aumento dos casos de desumanização dos estrangeiros. Exultam os patrões, com a força braçal ao preço da chuva e pau para toda a obra. Óscar Afonso, o reputado entusiasta do modo de vida romeno que dirige a FEP, afiança-nos que Portugal ainda precisa de mais imigrantes: 138 mil por ano, se quiser crescer 3%. Há quem fale dos imigrantes como quem fala de fertilizantes ou de peças de automóvel. Daí não vem surpresa. O que espanta é que uma parte da Esquerda insista na beatificação da imigração irrestrita, sem se aperceber da sua cumplicidade com esta visão economicista.