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David está no banco dos réus, acusado de abuso de confiança, para devolver 24 mil euros que a empresa do seu pai não deu à Segurança Social entre 2018 e 2020. Mas o pai morreu, a empresa foi fechada, e aqui temos mais um belo exemplo da inacreditável crueldade e incompetência do Estado português, implacável com quem passa dificuldades. Era uma empresa de produtos de cosmética para mulheres africanas, verdadeira lança em África.
- Fomos uma PME [pequenas e médias empresas] líder durante muitos anos aqui e em Angola. Todo o nosso rendimento financeiro provinha das exportações para Angola. As dificuldades financeiras vieram da impossibilidade de transferir o dinheiro. O Estado angolano decidiu proibir as transferências. Durante cinco ou seis anos foi assim. Isto destruiu milhares de empresas em Portugal e nós fomos uma delas. Tínhamos quatro ou cinco empregados e nunca deixámos de pagar à Segurança Social...
- Mas deixaram de pagar neste período, disse a juíza.
- O meu pai tentou manter a empresa à tona, era um homem íntegro e não é possível uma empresa funcionar sem pagar à Segurança Social...
- E a dada altura deixaram de poder pagar...
- Sim.
Os salários-base foram sempre pagos. Não foram eles a pedir a insolvência. O pai de David apresentou um plano de pagamentos aos bancos e aos fornecedores, mas um banco exigiu a insolvência.
- Nunca houve intenção de não pagar. Somos pessoas íntegras, toda a nossa vida cumprimos as nossas obrigações fiscais. O meu pai faleceu tragicamente com covid, depois a minha mãe, também com covid.
Segundos de silêncio na sala. David continuou:
- Tentámos ser dignos e justos, infelizmente as circunstâncias foram adversas.
Estava ali um homem, de súbito órfão e falido, que não era sequer gerente, mas responsável do marketing da empresa do pai, agora responsabilizado - “representante legal da arguida” - pelas dívidas ao Estado de uma sociedade que foi declarada insolvente pelo próprio Estado e que, evidentemente, e como sempre, se está a marimbar para as pessoas.
[A mesma Segurança Social que é capaz de esperar anos para enviar uma insolente e assustadora carta a reclamar, em 30 dias, milhares de euros supostamente em atraso, mais juros, a uma pessoa que já saldou tudo anos antes. É a ver se pega e, se não pega, ao fim de um mês de aflições e provas, não há sequer desculpas, apenas um miserável “lamentamos o lapso”, um “considere a anterior carta sem efeito”. Um dia poderei falar disto].
Uma semana depois, na sentença, a juíza suspirou diante de David:
- A Justiça não pode fazer de cobrador de impostos. A Segurança Social instaura um processo-crime, a sociedade já está considerada insolvente, a Segurança Social vai reclamar créditos ao processo de insolvência e depois desinteressa-se deste!
O advogado olhou aliviado David, os dois cansados disto, pois David tem 56 anos e já nem sabe que profissão tem, tanto se diz empresário, como técnico de marketing, como jornalista, dinheiro é que não. A juíza anunciou que ia cumprir o mínimo:
- É simbolicamente condenado em 50 dias de pena suspensa. É inglório o nosso trabalho aqui. Eu não sou cobradora de impostos, que é o que o Estado quer fazer de nós.
Não está fácil sobreviver, foi o que disse há dias, caros amigos, não está.
O autor escreve segundo a antiga ortografia