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O que é que uma luta de poder entre três accionistas pelo domínio de uma empresa, um alegado crime de falsificação de actas, nos pode ensinar sobre Filosofia e Verdade, Ética e Realidade? Muita coisa, pelos vistos muita coisa. E sobre as questões elevadas do... namoro? Ainda mais, pelos vistos ainda mais. Tentarei resumir o que vi esta semana no tribunal, estávamos já em sede de alegações, mas estou cansado de jargão jornalístico e não vou dizer que “as partes esgrimiam argumentos”, olha, já disse.
A procuradora da República acabaria a desmentir a própria acusação do seu Ministério Público contra os dois homens. O dr. Pedro, presidente da administração, e representando o accionista maioritário, entrou em litígio sobre o futuro da empresa, pensava diferente dos representantes das outras duas empresas. Só que estas duas minoritárias uniram-se contra ele, formando um bloco maior do que a primeira. Então, o homem e o seu cúmplice, que agora estavam no banco dos réus, usaram o seguinte truque: saíram de duas reuniões a meio e escreveram e assinaram as actas de acordo com o que queriam, alterando os estatutos da empresa e dizendo que toda a gente estava de acordo com isso! A procuradora sintetizou a posição do arguido, o dr. Pedro: “Eu sou o presidente e estas duas minoritárias não vão levar a melhor”. E depois acrescentou a palavra da moda: “São duas percepções perfeitamente distintas.” Isto é, a acusação diz a verdade, porque foram elaborados documentos que não correspondiam ao que se passou naquelas reuniões, só que não se pode provar os dez crimes de falsificação de actas, já que ele só contou aquilo a que assistiu, antes de sair da sala! “As actas, disse a procuradora, foram tiradas de percepções diferentes em momentos completamente diferentes.” Baralhados? Imagino que um pouco. Já a advogada de acusação, representando as duas empresas que se dizem lesadas pela “falsificação”, estava mais ou menos furiosa.
- O que nós temos de facto é uma falsificação! Existe só uma realidade! Uma acta é uma representação de uma coisa que se passou e tem que ser estanque a interpretações e factos exteriores a ela. Se não, estamos aqui a discutir se há uma ou outra realidade! Se não há consenso sobre uma determinada questão, então a acta diz que não há consenso! E se eu saí de uma reunião, escrevo na acta que saí da reunião!
Estamos todos - eu e quem me ouve desse lado - a pensar que esta é a nova-velha questão dos “factos alternativos” levantada pela nova ordem de Donald Trump, não vos parece?
Só que o advogado do dr. Pedro, que já tinha o Ministério Público do seu lado, apareceu com um argumento quase sentimental, quase não, sentimentalíssimo. Foi uma coisa que lhe aconteceu na faculdade de Direito e que nunca esqueceu. Estava ele “a namorar uma moça” quando esta lhe contou: “Toda a gente diz que tens boas notas porque és um pouco graxista”. Era verdade que ele, numa oral, tinha saído de lá com um 13, quando o exame, confessou o advogado, foi miserável, bloqueou e não disse nada que prestasse. De facto, era um exame “para levar um zero”. Mas faltava o outro lado da história e que nenhum dos seus maldizentes contava: aquele era um exame de melhoria de nota e o professor mandara-o calar e sair da sala, ficando com o triste 13 que já tinha, naquele exame não se podia descer, só aumentar.
- Contamos muitos factos verdadeiros com uma convicção genuína, mas sem perceber o contexto.
Isto é, para o dr. Pedro nem sequer houve mais reunião, para ele “a reunião não continuou” e portanto escreveu o que de facto aconteceu... para ele.
E agora eu saio desta crónica e quem me lê, desse lado, pode continuar a discussão. Já não tenho nada com isso.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia