A dona Vitória nasceu no final da mais sangrenta guerra da Humanidade. Quase oitenta anos depois, e no curso do maior conflito desde essa II Guerra Mundial - a invasão da Ucrânia - vai a tribunal apenas para se salvar do sobrinho. Porque é que a miséria surge tantas vezes em casa? Quem percebe as vagas de violência, as guerras civis dentro das famílias?
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A dona Vitória está algures no tribunal, mas fora da sala de audiências. No ano passado, gravou um depoimento para memória futura e é esse que a juíza quer ouvir agora. A funcionária carrega nos botões pretos e uma conversa entre uma velha senhora e um juiz ocupa o espaço. As más gravações, cheias de ecos e de estalidos, saltam atrás no tempo, parecem histórias de outras décadas. Vitória começa por dizer que está reformada e que foi avaliadora de património. Vive em Lisboa. O arguido é o sobrinho dela, acusado de violência doméstica. A voz agora da gravação:
A sua pretensão é que ele não viva lá e que lhe dê a chave?
Sim, sotôr.
A senhora equacionou a possibilidade de mudar a fechadura?
Já tentei, mas é muito caro. Ele foi viver para lá há três ou quatro anos. Foi criado pelos meus pais e tentei sempre ajudá-lo por causa dos meus pais. De vez em quando, batia à porta para eu o deixar ficar, e eu deixava. Ficava meses. Eu estou-lhe sempre a dizer para se ir embora.
O sobrinho quer mandar na casa e na tia com zaragatas e palavrões. Na gravação, Vitória cala-se de repente.
Tem de os dizer, os palavrões, pede-lhe o juiz.
Ai, sotôr, não me faça isso!...
O tribunal tem de ouvir para poder fazer prova. Não é a senhora que está a dizer, a senhora só está a repetir qualquer coisa que ouviu.
... mandava-me para o alho.
Tem de dizer.
Ela diz, envergonhada. O sobrinho também disse: "Tu e as tuas irmãs são todas umas putas."
Eu disse-lhe: uma é a tua mãe. "Quero lá saber. Também é, pronto!" Coisas assim sem nexo..., lembra Vitória.
Na gravação, uma longa tosse húmida. A recordação das ameaças:
Um dia destes parto-te os dedos todos. Ou então parto-te a outra perna.
A perna partida é o eixo principal deste caso. Foi em Agosto de 2021. O sobrinho levara um toldo enorme para a sala de jantar. Disse que era para vender. Discutiram. Ele veio por trás, empurrou-a, a senhora partiu a perna esquerda. Aos bombeiros, o sobrinho disse:
Não acreditem nela, que é uma grande mentirosa.
Estava doente, muito leve, quando foi empurrada.
Sei que fui ao ar. Lembro-me perfeitamente de estar no ar. Foi horrível, nem quero pensar.
Um dia, o sobrinho roubou-lhe o ouro, memória da vida inteira.
Estás maluca, guardas as coisas e esqueces-te!
Aí, a senhora mostrou-lhe o talão da casa de penhores que estava no quarto dele, recebera uma ninharia pelo ouro. A voz do juiz:
A senhora, neste momento, tem medo do seu sobrinho?
Ah, sim!
Fim de gravação. Silêncio. Regresso ao presente. A juíza, à minha frente no tribunal, pergunta:
A senhora ainda está lá fora? Quero esclarecimentos adicionais.
A funcionária vai chamar a dona Vitória. Eu imaginara mal a figura, pensara num vestido enlutado até aos pés, afinal usava rendas rosa nas calças de ganga e pintava o cabelo de louro. Mas, tal como eu pensara, era leve. Uma palha a tremer ao vento. A perna esquerda cautelosa. A voz igual à da gravação, apenas mais nítida. Trazia boas notícias. Depois da queixa, há meses, o sobrinho desapareceu como um vento mau.
Então, não tem havido problema nenhum?
Graças a Deus.
O sobrinho de Vitória, que não apareceu no tribunal, nem explicou porquê, receberá novidades da condenação.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia