Ouvi na rádio um especialista dizer que o crime de violência doméstica contra idosos duplicou no ano passado. Está explicado o que tenho visto nos tribunais. Um caso, depois outro e ainda mais um. Os nossos velhos pais e mães batidos, insultados, roubados.
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O filho viveu com a mãe entre 2015 e 2022. No banco dos réus, descolava os factos para a irrelevância e a surpresa, como se contasse um filme ou o caso de outra pessoa.
- Foram-me retiradas as chaves de casa. Estava a sair e apareceram quatro agentes que me pediram as chaves.
Quase todos os insultos do calão estavam no processo. Pensem nos mais rascas e violentos, também lá estavam.
- Não me reconheço nisso, disse o filho.
- Mas é possível ter dito?
- Não me recordo disso e não me identifico.
Em sua defesa, entregou dois relatórios psiquiátricos.
- Mas foi-lhe comunicado a si se padece de alguma doença?, perguntou a juíza.
- Chamam a isso um distúrbio de humor.
Um dia, trancou a porta. A mãe teve de dormir na vizinha.
- Eu nessa noite estava com a minha namorada. E eu sabia que havia outra chave na vizinha, disse o filho.
Entre 7 e 11 de Janeiro deste ano, retirou de casa várias peças e electrodomésticos da habitação da mãe.
- Eram coisas que eu usava para os meus desenhos. Além de ser distribuidor de pizas, sou artista plástico.
- Mas tinha coisas da sua mãe?
- Não.
Um dia, tirou o cartão multibanco da mãe, conhecia o código e retirou duas vezes 200 euros, o máximo diário.
- Esse dinheiro foi devolvido passados uns dias. Encontrei-o no chão da sala e por acaso lembrava-me do código, porque eu fazia alguns recados. Não me recordo porque o fiz.
Tinha mais uma explicação, aquela que um dia pertencerá à história de nós todos, ou já pertence:
- A morte do meu pai, que acompanhei nos últimos tempos de sofrimento... o covid, etc., foi duro para toda a gente... fiquei sem trabalho, tudo isso contribuiu para a degradação do meu bem estar.
O advogado tentou que o filho admitisse estar arrependido, mas foi imediatamente cortado pela juíza.
- Sotôr, o arguido não admitiu nada... só o caso do cartão e que logo devolveu o dinheiro! Nem sequer admite que tem uma má relação com a mãe!
E virou-se para o filho:
- O senhor está arrependido de alguma coisa?
- Estou arrependido de ter chegado aqui.
- Mas arrependido... do quê?!
- Estou preocupado que a minha relação com a minha mãe tenha terminado.
Por uma vez, acertou na ferida. A juíza mandou sair o filho para a mãe falar à vontade. A mãe entrou:
- O chegar a este processo tem a ver que, a certa altura, tive medo do que o meu filho me fizesse.
E contou que a abanava pelos pulsos e lembrava "quando ele crescia para mim com aqueles olhos abertos!", e os insultos que teve de repetir saíam-lhe da boca como refluxos ácidos do estômago, queimando tudo.
- Sentiu medo?, perguntou a advogada.
- O que eu senti mais foi uma mágoa. Eu sou mãe.
- Quer o afastamento do seu filho?, perguntou a juíza.
- Sim. Eu não o quero nunca mais na minha casa.
A senhora terminou e saiu, virando as costas ao filho.
Um distúrbio de humor, disse ele. Quanto ao amor, parece que saltou do coração da mãe, e se calhar ronda, assobia pelas paredes da casa da velha senhora, como certas dores que só nos atacam à noite, na escuridão.
*Jornalista
O autor escreve segundo a antiga ortografia