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Em que ponto o entusiasmo se faz ridículo e depois ameaça? A professora universitária contava a sua aventura no estranho mundo dos homens que não param, o relato de uma desgastante, demoradíssima perseguição. Durante 7-anos-7, um universitário mais novo deixou o cérebro afundar-se num equívoco cada vez mais bizarro e foi preciso chamar a polícia. Agora, ela estava a explicar-se no lugar das testemunhas
- Compreendo que, tendo alguma visibilidade, estou à mercê das críticas, mas isto foi reiterado, durante anos!
E ele no banco dos réus estava a mexer na barbinha escura, silencioso. Centenas de mails para o endereço público da professora por semana. Às vezes, só para corrigir o português das publicações, por causa de uma vírgula, outras a contestar posições sobre políticas públicas, mas também a perguntar-lhe, no confinamento, se estava sozinha em casa e a pedir-lhe que respondesse. A falar em “destino de homem e de mulher”.
E pelo menos uma ameaça indirecta... mas directa: “Quero com isto dizer que sais daqui ainda viva, e não morta.” Em duas ocasiões não só entrou na sala da conferência como deu empurrão.
- Sente-se ameaçada por este senhor?
- Até certo ponto, sinto-me ameaçada. Se digo que tinha muito medo? Não tinha. Mas porque não sou uma pessoa de ter medo. Também podia explicar que sou mãe de duas filhas, que eram menores. E é fácil saber onde é que vivo.
Num colóquio da Gulbenkian, quando o viu entrar, pediu a um colega para que dissesse ao perseguidor digital que não entrasse.
- Senti que estava a passar das redes sociais para a ameaça presencial.
Milhares de mails no final. Então o homem, nervoso, magro e verde como pé de salsa, disse que queria falar. E contou que o primeiro mail foi no seguimento de uma conferência dela na faculdade dele. Pedia o favor de lhe enviar slides que tinham sido utilizados na apresentação.
- Ela, ao ter visto a minha fotografia, terá visto que era a mesma pessoa. Era com a intenção de comunicar o meu ponto de vista sobre os interesses dela.
Com uma primeira resposta positiva, meteu na cabeça qualquer coisa que só ele saberá.
- Eu acreditava que ela me mandava sinais nas comunicações que fazia no Twitter. Eu só lhe escrevia com o objectivo de comunicar. E ela enviava-me sinais. Por exemplo, se eu lhe falasse em economia, fazia uma comunicação sobre economia.
- E então quando ela lhe envia um email a pedir: “Não me mande mais emails, por favor”?
- Achei apenas que estava a ser ambígua. Como muitos mails eram inócuos... Sim, às vezes falei sobre uma vírgula ou um ponto final, mas não era inamistoso, era só retórico.
Claro que dizer-lhe que ela ia sair dali viva e não morta era também uma metáfora, uma imagem linguística... A juíza relembrou a imparável cadência. Hoje 28 mails, amanhã 38, depois 25, e logo a seguir 53, mais 29, a caixa de correio electrónico da professora ardia com o fogo de barragem do intruso.
- Eu tinha a convicção de que a ela lhe interessava os emails... Falava de economia. Eu não quero de todo parecer... Não quero parecer bizarro nem ridículo. Desde que soube desta queixa, nunca mais mandei mensagens.
Para acabar, uma profunda introspecção:
- O dolo não se coaduna com a minha personalidade.
Como aquele rapaz das Caldas que anunciou na estrada “o medo a mim não me assiste” antes de se espalhar no skate. Quanto aos dois empurrões, foi também mal interpretado:
- Eu não dei encontrão, só lhe toquei com um dedo...
Meu caro, mesmo a discutir políticas públicas, não se toca nem com o dedo, não é?
O autor escreve segundo a antiga ortografia