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Na sexta-feira que passou, no coração do nosso Porto (o Porto de qualquer pessoa que o sinta seu), desejou-se Feliz 25 de Abril como se deseja Feliz Natal. Com a naturalidade de quem sabe que a data é irrepetível e a celebração inadiável, que o dia tem de festejar-se sem ponto e vírgula sejam quais forem as reticências do Mundo. O povo ordenou que assim fosse e ainda bem que as ruas não têm costuras: só rebentou a alegria de gritar a liberdade e a democracia.
A marcha - diz quem lá esteve que foi uma das mais participadas dos últimos anos - juntou os que viram chegar o tal dia inicial inteiro e limpo e os que chegaram depois dele, provando que Abril é uma conquista contínua e renovável. Um projeto não garantido e inacabado, com guardiães ferozes e atentos às ameaças que lhe roubam pedaços. Uma revolução que evolui, acolhendo novos direitos e novas conquistas. E por isso a festa, interclassista e intergeracional, uniu lutas antigas que se mantêm urgentes - pela paz, pelo pão, pela habitação, pela saúde, pela educação - às que foram trazidas ou renovadas pelas gerações nascidas em liberdade. Pela igualdade em todas as esferas, pelo fim da opressão que aniquila povos, pelo amor sem adversativas, pela autodeterminação individual, pelos direitos das mulheres – expressão que me soa sempre absurda mas que se justifica pela corda bamba e frágil sobre a qual demasiadas vezes andam em desequilíbrio.
Os que viveram Abril em 1974 ensinaram aos outros que o povo unido jamais será vencido. E os outros, bem aprendidos, avisaram os fascistas e os racistas que chegou a sua hora, que os imigrantes ficam e eles vão embora. E assim foi: palavras de ordem ditas a várias vozes, numa orquestra plural e harmónica, passo a passo até à avenida cujo nome assenta na perfeição no propósito de celebrar o Natal de Abril. Os cravos vermelhos andaram de mão em mão, as mãos deram-se umas às outras para dançar a liberdade e os ombros abeiraram-se na hora de cantar a "Grândola".
Discordo de quem vê perda de propósito ou identidade neste 25 de Abril restaurado que também se comemora com tambores, cartazes arrojados, pinturas no corpo e bandeiras que não existiam há 51 anos. Pelo contrário: vejo força e união entre pessoas de idades, contextos e causas diferentes que partilham o mesmo sonho e o mesmo chouriço grelhado numa mesa improvisada nos Aliados, onde muitos muitos mil se juntaram para continuar Abril. É dessa mistura que florescem três cravos pintados num muro da Avenida Rodrigues de Freitas - ontem, hoje e amanhã, lê-se em cada flor que desponta do betão.
O 25 de Abril, que a cidade fez arraial, é uma conquista de alguns para todos, todos, todos. Para os que sofreram por ele. Para os que o recordam com saudade ou saudosismo. Para os que o cantam e dançam. Para os que o menorizam. Para os que vão à rua e os que ficam em casa. E até para aqueles que lhe devem a liberdade de poder odiá-lo.