Das cavernas da estupidez e do vandalismo saiu este caso. Ou é mais fruta madura das redes sociais, ou melhor, das redes antissociais, como diz um amigo meu. Quando entrei na sala de julgamentos, estava um homem a testemunhar:
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- Eu tinha-me deitado às nove e trinta, porque a esposa estava a arrumar as coisas para pôr na carrinha, porque eu faço a feira ao sábado. Nessa altura, era a pandemia e a feira até me mandou uma mensagem a dizer que me podia deslocar entre duas localidades. E ela estava a arrumar, porque eu vou para a feira às seis da manhã.
Na rua, de madrugada, ouviu-se um brutal estrondo. Os verdadeiros trabalhos do comerciante começavam agora.
- Desci cá abaixo, dizem-me "bateram na viatura"... "alguém viu?", ninguém viu, "foi um carro a acelerar, mas a matrícula não se conseguiu ver".
Só que a pessoa que batera com o carro tivera uma ideia extraordinária, conectada à loucura do mundo: filmou tudo e transmitiu em directo o ataque no Facebook! Disse o homem:
- Isto, nas redes sociais, alguém partilhou... foi quando eu vi, realmente, esse vídeo em directo, partilhado, a baterem na minha viatura! E foi aí que liguei ao senhor doutor.
Um carro contra uma carrinha de trabalho Mercedes estacionada na berma. Na manhã seguinte, apresentou queixa na esquadra.
- E nesse vídeo que estava na Internet... viu o que aconteceu?
O comerciante soprou um suspiro fatigado.
- Vi. O que eu vi é que esse fulano passa pela minha viatura, fala qualquer coisa, dá a volta, diz "Tá aqui o meu amigo Mendo!" e o indivíduo bate na viatura, segue e começa a dizer palavrões.
- O senhor conheceu logo o senhor?
- Eu conheço-o de quando era pequenino, lembro-me dele, agora o nome não sabia. Ele no vídeo diz que é Quim, que deve ser uma alcunha. Eu sabia o nome do pai, mas não sei onde moravam.
Reconheceu o vândalo "pela sua fisionomia". Os danos na carrinha Mercedes foram contados em 3600 e qualquer coisa euros.
- Quais eram as razões porque conhecia o pai?, perguntou o advogado.
- Até conhecia melhor a mãe, porque a mãe desse moço viveu há vinte e poucos anos no mesmo bairro. Nunca tive más relações, nada, nada, nada.
Era o próprio rapaz a filmar-se a si mesmo na gincana destruidora.
- Nos dias anteriores ao incidente não houve nada de anormal que pudesse prever esta situação?
- Não, senhor doutor, nada.
A juíza interrompeu:
- Olhe, não percebi bem como é que o senhor teve conhecimento do vídeo que andava a circular... foi publicado no Facebook, certo?
- Ele fez directo!
- Mas como é que o senhor teve conhecimento?
- Há partilhas, um amigo meu partilhou e eu gravei...
Na polícia, o comerciante apresentou o vídeo e fotos dos danos da viatura. Seis meses mais tarde, foi chamado e mostraram-lhe fotos de suspeitos. Lá estava ele, o Quim, não teve dúvidas.
O depoimento acabou. O comerciante saiu da sala, um familiar foi atrás dele e eu, se calhar levado pela obsessão do directo, também o segui, coçando o nariz.
- Isto foi o quê, porque é que este rapaz fez isto?, perguntei.
- Não sei.
- Nunca teve nada com ele, nem confrontos?
Nada. Nessa noite, o palerma andara a chocar em mais carroçarias, fez mais espectáculos de chapa, mas disso não sabia nada de concreto. O seu negócio é vender malas, roupa, etc. Ou era. Não tem dinheiro para pagar o arranjo da Mercedes.
- Isto já foi em 2020. Desde 2020 que não consigo trabalhar, 2020, 2020, 2020, repetiu o homem.
O autor escreve segundo a antiga ortografia
*Jornalista