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J. navegava sem leme no mar do ciúme. Um dia, uma ex-amiga da mulher contou-lhe isto e aquilo sobre outro e noutras vezes sentiu que nas costas se cravavam os dardos da zombaria do bairro inteiro. Sabes o que dizem de ti, J.?
Creio que a angústia de J. continua, mas agora o homem parou. Não teve alternativa desde que o prenderam por violência doméstica agravada. Vi quando J. chegou num blusão de ganga azul e lã sintética cor de neve, trazido em algemas por dois guardas prisionais de olhos desconfiados. Vi e ouvi quando os guardas lhe libertaram os pulsos na varanda dos réus e o advogado lhe pediu ao ouvido: “Senhor J., agora é a altura de contar o seu lado da história, está bem?”
E J., pedreiro faz-tudo guineense, disse que sim e cumpriu.
O fio das acusações era longo. J. tinha vivido anos com B., a namorada, entre o Algarve, a Grande Lisboa - Agualva, Cacém, Reboleira, um salto até Vila Franca de Xira - onde, de modo sistemático, sofria de ciúmes da namorada, chamava-lhe puta e estúpida e acusava-a, generalizando, de “andar com todos os rapazes da Linha de Sintra”. Nas partes piores, quando supostamente bebia ou se drogava, entrava em chapadas, pontapés, ameaças de morte. Já depois do filho de ambos nascer, ter-lhe-á encostado uma faca de cozinha à garganta. Eu disse o filho de ambos, que é a chave principal desta miséria familiar. A resposta a este problema vital para J. surgiria em vagas de pormenores.
- Tinham discussões?, perguntou-lhe a juíza.
- Eram constantes. Bom, quer dizer. Ela está comigo e, ao mesmo tempo, estava com outros homens... e eu chamava a atenção. “Se queres estar comigo, fica comigo”.
- Alguma vez disse vou-te rebentar toda?
- Não.
- Alguma vez pegou numa faca quando ela estava de joelhos e disse que a matava?
- Eu não peguei em nenhuma faca!
- Alguma vez fez, diante da sua namorada, um telefonema para uma terceira pessoa dizendo que queria comprar uma arma?
- Eu nunca peguei numa arma.
Pela espinha deste homem deslizava a sombra do ciúme, venenosa e verde como a guerra.
- Eu recebia mensagens: “Olha que a tua namorada anda com tal pessoa”. E eu ficava envergonhado. Ouvi muitas conversas desagradáveis.
- Alguma vez disse à sua sogra que a filha dela era uma puta?
- Sim, sim, cheguei a dizer isso, sim, uma vez chateei-me.
O tribunal chegava ao centro desta história.
- Alguma vez demonstrou dúvidas sobre R. ser seu filho?
- Começa assim: a Tâmara chateou-se com a B. e...
E, contou J., esta Tâmara telefonou-lhe a dizer que o R. não era seu filho, mas de outro homem.
- Eu até me zanguei com a Tâmara e disse à B.: “Amigas?, mas que amigas são estas que dizem isto?!” Bom, discussão com mulher não acaba.
- Disse ou não que ia matar o seu filho?
- Não, não!
- Não o arrancou da mãe quando ele estava a ser amamentado?
- Não, o miúdo estava na cama! Ela liga para a esquadra aos gritos e toda a gente pensa que eu lhe estou a fazer mal.
O massacre do interrogatório prosseguia. De algumas coisas J. nem se lembrava, talvez tivessem acontecido quando voltava do churrasco com os amigos, depois de seis dias seguidos a trabalhar nas obras. No fim, J. suspirou e soltou um lamento que se derramou pela sala toda como, enfim, a verdade. J. gosta do pequeno R., o bebé. De repente, era um pai que, furando as regras judiciais, tratava a juíza por tu.
- Ele é o meu filho, estás a ver, eu não vou rejeitar o meu filho por nada. Ele é o meu filho, estás a ver?
E a senhora doutora juíza não o corrigiu e este homem perdido no mar aproximava-se de um porto, finalmente.