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Métodos discutíveis foram ensinados ao rapaz sobre a verdade desportiva em Portugal. E um dia, naturalmente, convenceu-se de que o futebol se ganha na secretaria. Sempre que ouço falar em mais uma suspeita de ilegalidade no futebol, a de ontem, a de hoje, a de amanhã, lembro-me do rapaz que uma vez me contou o que viveu quando tinha 13 ou 14 anos. O julgamento terminara um minuto antes e o rapaz, no átrio do tribunal, esticava e encolhia as pernas como se estivesse a aquecer no estágio. Estava nervoso com o interrogatório.
- Fui ao registo civil e usei o nome do meu primo.
O primo Carlos era bastante mais novo e, nesse antigamente, uma criança ia ao registo central, em Lisboa, e dava o nome para o primeiro bilhete de identidade. Entregava as fotografias, mediam-no ao comprido e esborratava os dedos na tinta preta. Era o dia em que um rapaz se fazia pessoa inteira de um Estado de direito. Só mais tarde o rapaz percebeu, com admiração, que isso permite ao Estado meter-se na vida de uma pessoa. Por exemplo, não admite que um rapaz tenha um bilhete de identidade com o nome verdadeiro, e outro com o nome e a idade do primo Carlos. Não admite que uma pessoa seja duas pessoas. Nem sequer a um futebolista. Feitios do Estado, mas era assim.
- Falei com o meu primo, fui pedir a certidão de nascimento dele e registei-me com o nome dele. Só lhe pedi que, quando fosse ao registo, me avisasse primeiro, disse-me o rapaz.
Durante a audiência, o juiz pedira-lhe a razão directa para o golpe. O juiz olhava divertido o rapaz, como se estivesse frente a um Alves dos Reis em miniatura. Um imprimiu notas falsas do Banco de Portugal na tipografia verdadeira, em Londres; o rapaz pôs a Conservatória do Registo Civil a passar um BI falso. O sorriso do juiz mostrava que este país ainda não o desiludira. Tinha sido por causa do futebol. O rapaz jogava futebol de 11 num clube regional.
- Eu já era juvenil, mas queria jogar nos iniciados. Já tinha passado de escalão, mas queria continuar no mesmo.
Lembro-me da sua cara triste. Iniciado, juvenil, júnior, sénior, é esta a ordem. Podemos chamar-lhe o mistério do tempo. Mas, pensara o rapaz, se há juniores que jogam com os seniores, porque não experimentar uma variante regressiva, de juvenil para iniciado?
- Quando cheguei com o bilhete, o treinador disse que era muito perigoso e não me aceitou.
- Você queria passar por ter quantos anos - Menos um.
- Qual era a razão que o fazia querer jogar mais a baixo?
- Tinha lá os meus amigos.
O rapaz lembrava-se de quando Polícia Judiciária o chamara para interrogatório. O primo acabara de ir com a mãe tratar dos documentos, por causa da escola, e chegaram ao “guichet” do registo e disse a mãe:
- É para o primeiro bilhete de identidade do meu filho.
E o senhor do “guichet” olhou as fichas e disse:
- Primeiro é que não é, minha senhora!
Mais tarde, com o medo, o rapaz destruiu o BI. Mas a falsificação e o abuso de identidade seguiram o caminho na Justiça.
- Isto já foi há tanto tempo. Pensei que se tinham esquecido.
Quando foi julgado, estava já empregado, com um filho de mês e meio. A Justiça parecia, parece, uma bola furada a arrastar-se na lama. Não chegou à selecção nacional. Fez-se sénior, mas só de futebol de cinco.
O autor escreve segundo a antiga ortografia