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Não cheguei tarde nem cedo ao julgamento do caso do gás pimenta, fiquei assim a meio caminho do fim. A verdade é que nenhuma das duas mulheres compareceu à sentença, nem a vítima, nem a atacante. E, por acaso, as duas ainda divergem no fundamental, já que a atacante com gás pimenta é que se sentiu muito atacada pela sua vítima, isto é, prejudicada na vida em geral. Mas o que se passou foi tão intenso, trapalhão e grave, tão exageradamente humano, que espero que esta crise familiar tenha um princípio de solução em 2025, a bem da criança.
Em resumo, uma mulher combinou encontrar-se com outra na rua para discutirem aquilo que pode ser descrito como rivalidade amorosa.
Quando a mulher legítima (como se costuma dizer) estava grávida, o marido deixou-a e começou uma relação íntima com outra mulher, doravante descrita como “a amante”. Então as duas, como se estava a dizer, combinaram discutir o seu caso na rua. E onde é que isso foi? Onde é que havia de ser? À porta do Jardim Zoológico de Lisboa, claro. Para quê e com que objectivos concretos e benéficos não me perguntem a mim, até porque ninguém percebeu. No entanto, sabemos como o encontro acabou, provou-se em tribunal que a certa altura a mulher legítima foi ao carro, tirou de lá um cilindrinho que disparou gás pimenta para cara da amante, que ainda foi empurrada e caiu no chão, magoando-se. Mais pormenores? As duas teriam cerca de 30 anos, e legítima foi-me descrita como “mulher normal, não arranjada para o julgamento”, enquanto a amante já era, mais uma vez pela descrição que me fizeram no tribunal, “muito produzida e toda betumada na cara”, o que teve efeitos tremendos na brutalidade de um ataque com gás pimenta nos olhos, nariz e boca. Para acabar, o homem desta história tem 25 anos, nunca ligou ao filho que entretanto nasceu e a sua profissão é personal trainer. Por um outro ligeiro acaso, a amante era dona do ginásio e, olha, é preciso ainda explicar que hoje já não andam um com o outro.
E ali andaram aos insultos, gritos, empurrões e choros nas vizinhanças das jaulas dos símios, dos fossos dos leões e dos ursos que nos pedem maçãs de patas no ar, sem ofensa para ninguém. Como pérola em cima da cereja do bolo, o homem por detrás disto tudo não tugiu nem mugiu, deixou as duas apaixonadas à briga sem intervir, de braços cruzados, não era assunto dele.
Agora que começou mais um ano, volto também a pensar no que é que faço, o que é que oiço e vejo neste trabalhos nos tribunais. Certa vez, tentei definir a coisa assim:
“Amizade, amor, sexo, traição, homicídio, incesto, pedofilia, maus-tratos, violência doméstica, ciúme, abnegação, racismo, religião, sorte, azar, premeditação, acidente, maldade, bondade, estupidez, egoísmo, heroísmo, mesquinhez, cultura, ignorância, riqueza, miséria, humor. Humor. Velhos e crianças. Anjos e monstros. Casamentos e divórcios. Medo e alívio. Polícias, ladrões, burlões, pilha-galinhas, loucos, sonhadores, prosaicos. Vida e morte. Toda a humanidade em Portugal.”
Como entenderão, estou convencido de que o caso do gás pimenta, não tendo grande categoria, cabe em algumas destas categorias.
E a criança? Também estou a pensar nela. Fez agora dois anos.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia