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Creio que as palavras ainda são para se usar. O polícia registou que Maria, viúva e doméstica, acusava: “Um indivíduo que apenas sabe chamar-se [C.], com a alcunha de ‘O Gordo’, de maioridade, residente no bairro acima indicado, bloco 12, 1.º esq.º - Lisboa”. “O Gordo” não era apenas alcunha, neste instante era já o cognome de C. no bairro.
Os vizinhos tremiam quando ele passava na rua, marcando os pés carnívoros na lama grossa. As crianças gritavam “o Gordo, o Gordo!”, pegavam nos berlindes e nos telefones e trepavam para a árvore. Os animais assanhavam-se ou calavam-se e fugiam atrás das crianças quando o Gordo saía à rua.
Não se ia à fonte se era a hora do Gordo beber, não se olhava em frente mas em círculo, uma triste homenagem ao gatinho Nino. Esse era muito novo e ninguém o avisou. Só há uma raça que está bem no bairro, os pombos, mas os pombos do Gordo.
O gatinho Nino viu a mão gorda a aproximar-se em feitio de alicate e deixou-se ficar. Se calhar julgou que a mão era macia como um novelo da costureira Maria. O que irá na cabeça de um gatinho quando o matam? O Gordo era canalizador, a mão dele desenroscava facilmente tubos velhos. Não aprendera a escrever e assinava os documentos com o indicador sujo de tinta. A costureira (desempregada) Maria acusou o Gordo de que, sem motivos que o justificasse de qualquer maneira, matara o seu gato, que dava pelo nome de Nino, torcendo-lhe o pescoço.
Segundo disse a denunciante, “o acusado terá morto o gato por este ter tentado comer um pombo dele, facto que não corresponde à realidade”. Era esta a defesa do Gordo. Mas no primeiro interrogatório policial nem se dignou explicar. Foi óbvio que não pensou que ia a julgamento pela morte de um gato. Pegar no rabo de um gato e atirá-lo de cabeça às traseiras da garagem, espetar-lhe um arame pela boca são desportos com gato, não são crime, parece que o Gordo acreditava nisto. Só atirou a mão ao gato e o gato morreu. A explicação que deu no tribunal envolveu, no entanto, os pés: “Referiu ter dado um pontapé no gatinho por este ter atacado os pombos do pombal que mantém na varanda, fazendo-o cair do primeiro andar e, tendo verificado que estava morto, tê-lo atirado para a lixeira”.
Maria disse que o gatinho era bebé, nem conseguia subir degraus, quanto mais assaltar pombos. Ela gostava muito do Nino, era a companhia de uma viúva desempregada. Ângelo, pescador de rio, estava à janela e viu o gato preso pelo pescoço, parecia que já vinha morto. Rita, empregada de limpeza, viu o gato morto e ouviu o denunciado dizer que faria o mesmo a todos os gatos que lá aparecessem. “Inclusive ameaçou as pessoas, se fossem testemunhas, que lhes faria o mesmo que tinha feito ao gato”. A reformada Principelina foi a última a ver o Nino com vida. Estava a brincar com ele e depois virou as costas e o gatinho foi até ao jardim. Então o Gordo “dirigiu-se junto do gato, pegou-o pelo pescoço agarrando-o, e levou-o pendurado pelo pescoço.” O que mais impressionou Principelina foi a maneira como teve a certeza: pelos filhos do Gordo.
- Os filhos dele encolheram-se, género de se arrepiarem.
O Gordo torceu o pescoço do Nino à frente dos filhos. Já tinham 11 e 12 anos na altura, o Gordo não percebeu a cara deles*
*O autor escreve segundo a antiga ortografia