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Sexta à tarde, se os vírus inconstantes da Primavera me deram descanso à garganta (escrevo este texto antes...) desci a Avenida da Liberdade para comemorar o 25 de Abril. Para celebrar muito o dia mais importante da democracia portuguesa, pensar um pouco no amigo dos pobres Papa Francisco que serviu de pretexto, sem culpa nenhuma, e por burocráticos protocolos, para o governo tentar defenestrar os portugueses do Dia da Liberdade. E ainda reservava um microssegundo à tristérrima amostra de portugueses “de bem” que, depois do Papa “comunista” morto, já gostam dele, por exemplo os do partido do pedófilo “de bem” aliciador de rapazinhos, do ladrão de malas “de bem”, do bêbedo “de bem” acidentado ao volante, do deputado pai de futebolista “de bem” que espanca miúdos adversários e, claro, do vigarista-mor, o sr. 30 metros quadrados “de bem”. Se calhar já chega.
Lembrei-me então de Rogério, o homem das frases inesquecíveis, que há anos já sofria com estas Primaveras indecisas, pois no seu motociclo vendia castanhas assadas no frio, e gelados no Verão, de modo que nem vendera castanhas suficientes no Inverno nem se safava por esta altura.
– O Inverno foi longo. Durante muito tempo não se fez nada.
Agora o seu negócio estava a recuperar em Lisboa. Um dia, os miúdos perguntaram pelos gelados, mas ele não apareceu. O senhor Rogério fez mal a curva e riscou um carro de uma ponta à outra. Acordou em pânico no tribunal. Disseram-lhe que era acusado de recusa a exame de álcool. A ficha policial, disse-lhe a procuradora, provava que fora preso muitas vezes. Agressão com ferro, agressão a agente da autoridade, detido com mandado de captura, detido por condução com álcool, detido por isto e aquilo.
– O senhor já foi preso 11 vezes, terminou a magistrada do Ministério Público. Até já cumpriu pena.
O senhor Rogério tinha um problema, e até mais do que um.
Oito filhos, e a viver com três deles mais a mulher, que não trabalhava. E todos os dias este dilema:
– Eu sou capaz de andar o dia todo... bebo leite de manhã, bebo leite ou bebo chá, sou capaz de andar o dia todo, pela luz dos meus olhos! Depois, é claro, se aparece um amigo...
Houve uma altura em que, lembrou ele, era forte, “tinha caparro”. O senhor Rogério estava ligado à história da ponte sobre o Tejo. Foi, há mais de cinquenta anos agora, um dos belos rapazes pendurados nos andaimes, a dezenas de metros da água do Tejo, vendo o Terreiro do Paço com o sol da manhã, a ligar com as mãos, para sempre, as mais distantes margens do país, do lindo portugalito do presidente do Conselho.
– Eu trabalhei na Ponte Salazar!
Como vêem, trazia aqui um rebuçado para os fascistas que no 25 de Abril por aí andariam com azia. Rogério emigrou para a Alemanha, voltou, mas a vida estava muito má, até porque um filho ficou paralítico num acidente. Rogério começara a chorar.
– Está a dizer que bebe por causa do seu filho?
– Eu tive uma emigração boa, eu pensei que ia ter uma boa reforma, chorou Rogério.
Mostrou as mãos, os braços, o cabelo grisalho.
– Eu confesso aqui que sou uma pessoa boa. Mas basta beber duas ou três cervejas e fico choné. Eu quando trabalhava na ponte tinha caparro!...
– O senhor está arrependido?... Vê-se que está... é das tais perguntas que não vale a pena fazer, disse a procuradora. É a sua última oportunidade.
A juíza condenou-o a oito meses de prisão, suspensos por três.
– Deseja dizer mais alguma coisa em sua defesa?
– Peço perdão e parece-me que vou viver a minha pessoa de outra maneira.
Era a esta frase, que nunca esqueci, vinda do poço da sabedoria e da poesia do povo, que eu queria chegar.
Um feliz 25 de Abril para o ano e para sempre.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia