Corpo do artigo
Há muitas maneiras de filmar uma casa, aliás há inúmeras maneiras de filmar qualquer coisa, mas se alguma vez se fizer o filme surrealista-neo-realista, socialmente empenhado e de terror sobre um lugar absurdo, proponho a casa cheia de quartos do senhor Bruno e as pessoas que lá viviam, brancos, mulatos, negros e chineses. Ele agora vive numa penitenciária, mas teve, por assim dizer, uma saída precária acompanhado de dois polícias de ar sério e algemas no cinto. O senhor Bruno, português caucasiano barbudo de carrapito rasta, indignou-se com o depoimento da testemunha Vasilis, um eslavo esguio como um pau de gelado de leite que um dia fora seu hóspede:
- Esse senhor acaba de dizer que eu traficava droga! É por causa de afirmações como esta que estou preso, sim, eu fumava marijuana, mas quando me arrombaram a porta, eu tinha 1,6 gramas, isto alguma vez é tráfico?! Tenho cancro nos pulmões e espalhado no fígado, no testículo. E desde que me tiraram o óleo de canábis na prisão estou muito pior!
- Desculpe, mas o senhor não tem já uma condenação por tráfico de droga?, começou o procurador.
- Isso não foi tráfico! Eu fui de férias a Marrocos e sentava-me a uma mesa de um café e eles punham saquinhos de haxixe em cima da mesa e eu fui-os guardando na minha bagagem e quando vinha para Portugal eu, eu, eu, na fronteira eu esqueci-me que tinha aquilo lá!
- Pronto, está bem, já chega, suspirou o procurador.
Explicava o senhor Vasilis, pela intérprete, porque “my portuguese is very bad”, que vivia num quarto e era amigo da senhora Ana.
- No início do ano, emprestei-lhe 800 euros, uma vez que a senhora Ana não estava a trabalhar e tinha dificuldades. O senhor Bruno então pegou nesse dinheiro e agrediu-a.
O senhor Vasilis repetiu que eram só amigos, e que ela estivera grávida algures, depois teve um filho, mudou para uma casa sem luz na Serra da Luz, vieram as autoridades e levaram o filho à senhora Ana por não saber cuidar dele, e foi então parar a casa do senhor Bruno onde, pelos vistos, passava o dia no quarto do senhor Bruno a drogar-se com ele.
- O senhor Vasilis nunca foi namorado da senhora Ana?
- Nunca. Nunca tivemos qualquer relacionamento sexual ou sentimental. Que sentido tinha sermos namorados se vivíamos em quartos separados?
Mas então a juíza abriu o calhamaço do processo e lembrou as suas declarações para memória futura, há anos, onde dizia o senhor Vasilis, preto no branco, que fora namorado da senhora Ana entre Dezembro de 2019 e Março de 2020. Estava este julgamento estranho? Não o suficiente, porque o procurador indagou o senhor Vasilis, como na pimba música “mas quem será, eu sei lá, sei lá”:
- O senhor sabe quem é o pai da criança?
- I know, yes, suspirou o senhor Vasilis, amargurado.
- Teve conhecimento de que a senhora tivesse tido um namorado com o corpo todo queimado?
- Sim, porque ele é que é o pai da criança. Mas foi antes, ele nunca entrou na casa do Bruno.
Depois veio uma senhora brasileira indignada que não se lembrava de nada, parecia um CEO de grande empresa corrupta numa comissão de inquérito parlamentar, não lembrava nem tinha de se lembrar, mas lembraram-na de que já dissera que Ana passava o dia no quarto a drogar-se e a insultar-se mutuamente com o senhor Bruno. Ficou furibunda quando o procurador lhe perguntou se alguma vez os tinha ouvido a ter relações sexuais.
- O senhor acha que eu sou o quê? Acha que ia fazer um buraco na parede para ver, acha que eu tenho cara disso?!
- O senhor procurador disse ouvir, não disse ver, cortou a juíza, não tem de fazer nenhum buraco na parede para ouvir!
Bom, isto continua noutro dia. Feliz Natal a todos lá em casa e vamos com calma.