O passado rural do Porto foi apagado da fotografia
Corpo do artigo
No início do século passado, o ar do Porto cheirava a feno. Sabemo-lo graças a João Chagas. Aos primeiros raios da manhã, entravam na urbe os produtos agrícolas, carregados em burros e carros de bois. Esta oferecia então “o aspeto de uma vila rural”, escreveu o animoso republicano. Meio século depois, Orlando Ribeiro observava que nos arredores da cidade “e até em inclusões na área urbana, o solo que não está ocupado pelas ruas e pelas casas reparte-se nos mesmos campos e nas mesmas bouças do Minho”.
Os antepassados de muitos portuenses vieram do campo ou fizeram agricultura em sítios como Paranhos, Francos, Lordelo ou Ramalde. Este cronista cresceu num prédio cuja traseira pegava com um estábulo, na Rua do Monte dos Burgos. Havia um milheiral e um prado tosquiado por algumas vacas.
Não faltavam quintas agrícolas no perímetro da cidade. Uma das mais notáveis era a Quinta da China, eternizada nas telas da sua inquilina Aurélia de Sousa. Nessa mesma quinta, por obra e graça da Mota-Engil, anuncia-se o nascimento de um “empreendimento de luxo com ambiente campestre”. Eis o novo regime do campestre: climatizado, higienizado, expurgado da lama, do pó e das moscas. Tão deleitoso quanto inautêntico.
Não muito longe, nas Antas, a Câmara prepara-se para recuperar uma outra quinta: a dos Ingleses. O propósito é a instalação de um “biolab”, descrito como “o primeiro bosque-laboratório participativo do país” [sic]. Nada, neste equipamento, remete para o passado rural da cidade, para uma pedagogia da memória.
Perguntamo-nos porque não possui o Porto um núcleo museológico dedicado a esse passado. O Museu de Etnografia e História foi o último lugar que lhe prestou tributo. Votado ao abandono, fechou nos anos 90. Sem espólio ou função expositiva, o núcleo rural de Aldoar, inserido no Parque da Cidade, nunca esteve à altura.
O território de Azevedo, fóssil vivo, dificilmente escapará à purga. Adivinhamo-lo fadado para luxuosas atmosferas campestres.
O simulacro rural da Quinta da China e o rural saneado do “biolab” são novos capítulos desta infidelidade à história do povo portuense. Quando não dá para mercadoria imobiliária, a ruralidade pretérita é um embaraço para o cosmopolitismo dissolvente.