O rapaz sentara-se no seu fato de treino verde, o cabelo num carrapito de tranças grossas que serpenteavam em várias direcções, qualquer coisa de Medusa. Não parecia medroso, triste ou aborrecido, só curioso. Levantou-se para dizer o nome, a morada e, finalmente, que não queria falar sobre o assunto que o trazia ali.
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Sentou-se e o tribunal ligou o vídeo de Lisboa para Espinho, para interrogar o homem que prendeu o rapaz há um ano. Era na altura polícia das "equipas de intervenção rápida em Benfica", foi à tarde, estava com um colega a patrulhar o bairro e viram dois rapazes numa mota, em cima do passeio. Os dois polícias estavam à civil, isto é, à paisana ou, como agora se diz, piorando as coisas, descaracterizados.
- Vimos dois rapazes em cima de uma mota, a conduzir a mota em cima do passeio. Foram abordados e o que conduzia
disse que não tinha autorização para conduzir. O outro rapaz foi questionado se tinha alguma substância ilegal com ele e disse que não. O condutor da mota disse que sim, que tinha.
A história era tão simples que o rapaz parecia, um ano depois, estar a pensar na simplicidade do disparate que fez. Tinha 17 anos, não tinha carta, não trazia sequer identificação, e conduzia no passeio carregando, a tiracolo, uma bolsa de couro com uma tupperware com 40 gramas de haxixe prensado e panfletos para vender, uma faca de cortar e 901 euros em notas. Uma verdinha de 100 euros, e outras de 50, 20, 10 euros e, para a conta dar certa, uma moedinha de um. Foi a mãe do rapaz quem o identificou, na esquadra. Apresentou o seu cartão de cidadã e disse que sim, é o meu filho. Mas o tribunal precisava da certeza e a juíza pediu ao rapaz para se levantar, dar a volta ao varandim dos réus e colocar-se à frente da câmara de vídeo, para o guarda o ver desde Espinho. O rapaz parecia estar num casting ou um desfile de moda. Caminhou calmo, gingão, dançarino no fato de treino verde, nos ténis almofados de borracha, a cabeça suspensa no ar pelo belo carrapito, que explodia como fogo de artifício negro.
- É ele, é, disse o polícia.
O segundo polícia também falou pela televisão e, no geral, disse o mesmo. Mota no passeio, bolsa com droga e dinheiro.
- Chegue outra vez junto da câmara, por favor, pediu a juíza.
Desta vez, o rapaz ia aborrecido, desafiador, sem paciência para gravar o segundo take do casting da polícia. Um jovem marchava para o seu patíbulo, um vitelinho no matadouro.
- É ele, é, confirmou o segundo polícia.
A procuradora alegou estar provada a condução ilegal, o tráfico de droga de menor gravidade, não havia explicação para um rapaz de 17 anos andar à tarde com o equivalente a um salário de português em notas e 40 gramas de droga. Acrescentou que era jovem sem cadastro criminal mas que as suas maneiras no tribunal, "de sobranceria, altivez, displicência", podia querer dizer que o rapaz irá acabar mal, "eu espero estar enganada". O advogado do rapaz disse que é permitido conduzir no passeio se for para acesso a uma garagem, que a droga era para consumo próprio e que, assim, qualquer pessoa poderia ser acusada de um crime só porque traz dinheiro na carteira! Ao sair, deslizando em pensamentos de como é que isto me aconteceu, o rapaz foi um cavalheiro:
- Boa tarde a toda a gente, disse ele, quase sorrindo.
- Boa tarde, respondeu a juíza.
- Boa tarde, disse-lhe eu.
Feliz Natal, rapaz do carrapito. Aliás, Feliz Natal a todos, menos aos ditadores.
*Jornalista
O autor escreve segundo a antiga ortografia