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Naquele andar do tribunal, as portas das salas de julgamentos estavam todas fechadas. Mas, esgueirando-se por uma frincha como corrente de ar, como lamento que subia de um poço profundo, esgueirava-se a voz aguda de um homem. Eu ia bater à porta mas ouvi o homem e percebi que não poderia entrar: falava de um rapaz com uma doença que, pelos vistos, lhe poria a vida em risco e que tudo o que ele fizera, disse o homem, era para o rapaz “ficar em casa e se dedicar ao onanismo.” “Foi para baixar o “seu líbido superlativo”, era assim que ele falava e, como tenho ouvidos, fiquei a ouvi-lo no átrio deserto e gelado.
— Foi com esse intuito que eu acedi aos seus pedidos. E fi-lo convictamente, com esse objectivo de lhe salvar a pele.
Era o tio a explicar o dia em a Polícia Judiciária lhe entrou em casa às sete da manhã e o acusou de abuso do sobrinho.
— Aquilo de que me acusam é fantasia pura e perniciosa, que eu já levo oito anos deste martírio.
Tudo fantasia não, apenas as intenções sobre o dia em que subiu a casa com o sobrinho para mudar de camisa de semana para camisa de fim-de-semana e saiu do quarto ainda com a fralda de fora, à frente do sobrinho, e logo ambos saíram para jantar. Mas uma coisa era verdade: o homem tinha, de facto, enviado muitos, imensos filmes pornográficos ao sobrinho, sem nunca avisar, por exemplo, a mãe do rapaz. Mas só para o proteger:
— Eu mandava-lhe aquilo na esperança de que ele se entretivesse em casa. Eu só correspondia aos pedidos insistentes dele.
— Com que frequência é que enviava?
— Olhe, enviava sobretudo quando ele me enviava 30 sms num dia! Era quando calhava, não havia um ritmo certo. Podia mandar dias seguidos e depois estar uma semana sem mandar.
Agora, pelos intervalos da madeira, a voz de outro homem. O advogado de acusação:
— O seu objectivo era satisfazer-lhe a líbido ou era ir-lhe aumentando a líbido, à medida que ia vendo os vídeos?
— É uma pergunta para a qual não tenho adjectivos! A minha intenção era que ele satisfizesse o líbido e que não fosse para a rua. Agora se ele aumentava ou diminuía, eu não sei. Nunca me passou pela cabeça que aquilo pudesse aumentar, pelo contrário! Mas o problema era o superlativo do líbido dele!Então, o tribunal repetiu em voz alta as mensagens. O advogado falava como se concordasse com o homem, mas era o contrário:
— “Queres a visão do paraíso?” “Agora só mando mais este, até que peças mais”. Isto destinava-se a acalmar a líbido do...?
— Sim, sim. “Eu não te mando mais”, respondia o homem.
— “Este agora é que o último, até que peças mais”. Isto também é para acalmar a líbido...
— Ah é, com certeza!
— “Acho que por hoje já chega”. “Achas?” Isto era para acalmar...
— Sim. A intenção era essa.
— “E tu, pões-te de gatas ou é em pé?” Isto também era para acalmar! “Diz se queres”... Isto era para acalmar!
Era sim, era sim, fazer com que ficasse em casa, mais valia que ficasse retido em casa do que sair para a rua, guinchou o homem. Porque a ele preocupava-o, porque o rapaz a qualquer altura abria a porta e “ia para as meninas ou para os meninos, colocando-se em risco de vida”, e essa era a preocupação do homem acusado. Imaginem as horas de pesquisa internética deste homem para salvar o sobrinho da morte. Conhecia-o desde pequenino. O que é que o rapaz lhe pedia?
— Era o sempre o mesmo.
— Mas era o quê?
— Manda de tudo.
— Homens, mulheres...?
— Quando ele me dizia “manda de tudo” era tudo...
Às vezes, os lugares comuns são apenas lugares em que todos nos reconhecemos. Aqui está um: “de boas intenções está o inferno cheio”. Mas de más, ainda mais, ainda mais, não é? Não vi, não quis ver, espero nunca ver a cara deste homem. Ficou-me aquela voz indignada de equívocos. Um chefe de família, dirão as pessoas, com uma profissão respeitável. Quando saí para a rua, o dia estava todo em farrapos.
*O autor escreve de acordo com a anterior ortografia