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Sexta-feira, quando Santo António lá estava, com menino ou sem menino ao colo, a maldizer ou a encolher os ombros a mais uma superguerra sangrenta no Médio Oriente, quando Israel começava a bombardear e a matar a sério no Irão, porque a fome e o genocídio em Gaza já não lhe enche a pança, quando entrava a madrugada em Portugal, dizia eu, entrei no Casino da Figueira da Foz, que tem carpetes fofas onde podemos caminhar em silêncio. Aliás, não podemos, porque as máquinas chamam as pessoas com estridência, apitam e tilintam de cores, uma oferece cinco milhões de jackpot, outra dez, e lá estavam várias almas sentadas, homens e mulheres, velhos e jovens, a carregar nos botões da sorte como se a slotmachine fosse uma ciência. Lucky Lobster Two, Sweet Girl, Golden Glitters, um senhor solitário dava murros suaves no ecrã para soltar, pensava ele, a fortuna da máquina, e um casal de namorados celebrava o Santos Populares a esturrar dinheiro.
E lembrei-me da pobre mãe que vi no tribunal há dias, a senhora que recebeu uma mensagem aflita do filho, olá mãe, estou aqui com uma dificuldade inesperada, este telemóvel nem sequer é o meu, o meu encravou, podes enviar-me agora mesmo algum dinheiro até que eu... manda-me, mãezinha, 1270 euros para este número que eu já te explico.
A senhora assim fez e nunca mais teve paz. Era burla. Agora estava no tribunal com um grande dilema nos braços. A juíza explicava que o casal de acusados atrás da mãe não tinha sido acusado, nem pela Polícia Judiciária, nem pelo Ministério Público, há três anos, do crime de burla agravada, mas apenas de apropriação indevida de objecto achado. À data do crime, as autoridades ainda não tinham juntado os milhares de processos num só... Confusos? Também a senhora estava, enquanto a juíza a aconselhava a chegar a acordo para receber os 1270 euros e pedir uma indemnização suplementar que achasse conveniente pelas noites sem dormir. Tanto podiam ser cinco euros, como um milhão, passe o exagero, mas dizia a juíza, com razão, que mais valia receber alguma coisa porque não era garantido que o casal atrás da mãe acabasse condenado, e até corria o risco de não receber um cêntimo:
– É preciso provar que foram eles, e que foram os dois! Em casos extremos, pode até haver uma absolvição, não temos imputado que foram eles que mandaram as mensagens.
No banco dos réus estava um ex-casal, ambos nascidos no Brasil, e o esquema era este: tinham dito às autoridades que o dinheiro lhes fora parar à conta como se fosse um golpe de azar, estavam sossegados na sua vida quando alguém lhes depositou 1270 euros, sem serem tidos nem achados, iam deitá-lo fora, iam devolvê-lo a quem, se nem conheciam a senhora de lado nenhum?!
De maneira que agora, no tribunal, podiam dizer que não tinham culpa, pois nunca mandaram as famosas mensagens “olá mãe, olá pai”. Além disso, a conta bancária era comum mas não estava em nome dos dois, só ela era titular. Isto é, o rapaz podia dizer que o esquema tinha sido da rapariga, sem ele saber de nada, e a rapariga vice-versa, foi o meu ex-namorado que me meteu nesta alhada. E seriam absolvidos da apropriação indevida de objecto encontrado, como tivessem apanhado um chapéu de chuva perdido na estrada.
– Eu não consigo, eu não consigo aceitar, torcia-se mãe, eles têm que ser julgados, o que eu passei, até recebi outras mensagens em nome do meu filho, eles até já sabiam a minha morada, isto custa-me muito, dizia a pobre senhora.
Mas foi conferenciar com o marido, e com os advogados dos suburlões contratados pela rede. E pronto, a senhora acabou por aceitar 500 euros que o casal foi levantar ao multibanco. Se quisermos ser mauzinhos, em troca de nunca mais ter tido paz na vida, recebeu de volta os 1270 euros e mais 500 de jackpot. 500 tostõezinhos para o Santo António.
O AUTOR ESCREVE SEGUNDO A ANTIGA ORTOGRAFIA