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Se era um susto, era um susto bem montado. Uma navalha encostada à barriga assusta. Mas não bate certo. Eles abordaram dois rapazes e uma rapariga à saída do liceu. E apontaram a navalha à barriga da rapariga. Eles sabiam que os dois rapazes ficavam quietos por causa dela. Joana tinha 14 anos. Não era susto, ou brincadeira, era um assalto. Três assaltantes para três estudantes.
Assistimos agora ao exercício da sobrevivência. É o instinto mais velho da Humanidade e é o primeiro a aparecer. Miguel tenta provar a sua função secundária nos acontecimentos. Isso é mais fácil quando os outros dois arguidos não comparecem no tribunal.
- O Ricardo é que apontou a arma.
- Sabe onde é que ele está?
- A última informação que eu tenho dele é que estava detido.
- De onde é que o conhecia?
- Do bairro. A partir do momento em que ele apontou a arma, eu e o Daniel dissemos: “Isso não, não era isso que íamos fazer!”
- Quando os abordaram foi com que intenção?
- A nossa intenção acho que era só pregar um susto. Era normal…
- Eu não costumo andar a assustar transeuntes, interrompeu a juíza. E a maior parte das pessoas também não... não tem graça nenhuma.
- Estávamos sob efeito de drogas… Eu sei que isso não é desculpa.
Miguel assegurou que há dois anos que está curado, depois de ter feito internamentos. E que naquela tarde, à saída da escola, foi ultrapassado pela violência de Ricardo e da sua navalha.
- Ele encostou a navalha, mas não feriu ninguém, aliás, só mostrou, só mostrou! E eu disse-lhe nitidamente que não estava ali para magoar ninguém.
- Está arrependido?
- Claro, não queria aleijar nem tirar nada a ninguém!
Disse-lhe nitidamente, disse Miguel. O problema dele é que a memória da vítima de um assalto também é nítida. Há uma cara que fica marcada na cabeça. Quando Joana entrou, disse:
- Apontaram-me nesta direcção.
- Está a apontar para a zona da barriga, disse o procurador da República.
- Sim.
- E quem é que apontou a navalha?
- Foi este senhor.
- Eu?!, guinchou Miguel.
- O senhor agora está calado!
Ele moveu-se na cadeira e desenrolou o cachecol do pescoço. Tinha entrado com tosse e agora tinha tosse e calor.
- Está perfeitamente convencida de que foi este senhor?
Joana olhou para trás. Via um rapaz mais velho, mas ainda com borbulhas vermelhas. Todos os que estiveram no assalto estão hoje mais velhos, ela já fez 17 anos. Miguel trazia o cabelo cortado em degraus pequenos e eriçados, cheios de gel e negros.
- Já foi há muito tempo, mas penso que sim.
Os advogados tentaram a via da confusão de identidades. Não teriam os três assaltantes semelhanças físicas? A um gesto do advogado, Miguel levantou-se. Parecia um lavagante num aquário a pedir que não o escolhessem para a panela.
- Ficou-me marcado. Acho que sim, que foi ele!, disse Joana.
Entrou Cátia e acabaram-se as dúvidas. Cátia chegara a meio do assalto. Foi por causa dela que acabou depressa: era amiga de Joana e dos dois rapazes, mas também era amiga de um dos assaltantes! O Daniel, quando viu a Cátia, ficou muito incomodado e começou a dizer “vamos embora, não lhes façam mal”. Ela recordava: o rapaz que tinha a carteira com a corrente amarrada tinha levado uma chapada na cara.
- O outro que apontou a arma… não sei o nome, mas sei quem é.
- Quem é?
- Posso dizer? É o moço que está aí atrás.
Miguel é que tentara manter o assalto mesmo quando um dos companheiros pedia para acabar e fora dele a ideia de dominar os rapazes ameaçando a rapariga. O procurador disse a Miguel que a lei não o obrigava a dizer a verdade. Mas estava irritado.
- Fez um acto de contrição que, com o devido respeito, é falso! Só nos podemos arrepender do que fizemos, não do que não fizemos.
Pediu pena de prisão suspensa, disse “delinquência juvenil”. Uma sorte: no assalto, Miguel estava a poucos dias de fazer 21 anos, que o poriam fora da atenuação especial para jovens. Lá fora, o advogado de Miguel falou para quem gosta de viver com uma navalha no bolso:
- Agora ficas com uma espada em cima de ti.