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Ouvi a lista de recém-nomeados para o governo de Donald Trump, e é esta um idiota antivacinas a mandar na Saúde, outro, que é suspeito de tráfico sexual, sexo com menores e consumo de drogas, vai para destruir a Justiça obedecendo ao presidente, outro ainda um fanático religioso que jura que a Palestina nem existe será embaixador em Israel e, já agora, um apresentador de variedades de TV mandará na política de defesa norte-americana, etc. Por causa disso, à minha memória, esse “pátio de milagres”, como dizia Nélson Rodrigues, regressou de súbito o empresário individual Ilídio. Ilídio, um homem que um dia decidiu cumprir missões que nunca lhe seriam confiadas por ninguém com um pingo de juízo.
O relatório da polícia começava com um desastre de viação, numa rua de Lisboa, às 2h30 da madrugada, e depois só lendo:
“... em virtude de ali ter ocorrido um atropelamento”, escreveu o guarda que se dirigiu ao local, “que teve como resultado ferimentos de pouca gravidade na pessoa colhida”. Depois referia-se a Ilídio, que surgiu no relatório como “o mesmo”.
“O mesmo, ao passar também no local e verificado o ocorrido, puxou de uma carteira própria para documentos, abriu-a e exibiu-a para os presentes, dizendo, ao mesmo tempo, que era agente da Polícia Judiciária, emitindo sobre o ocorrido as seguintes opiniões: que a pessoa colhida ‘não tinha nenhum ferimento’, que estava ‘a prejudicar o condutor do veículo atropelante’”.
E com esta linguagem baralhou “todos os intervenientes e os populares que, entretanto, ali haviam ocorrido”.
Há um atropelamento na rua e alguém sugere que o atropelado, no chão, uma mulher agarrada ao joelho, está a prejudicar quem a atropelou com o carro, e manda dispersar toda a gente. E que ninguém chame a ambulância!
Foi, naquela noite, a heróica acção do empresário Ilídio.
O polícia pediu-lhe então que ele provasse a qualidade de agente da PJ, identificando-se, e Ilídio pediu-lhe que aguardasse um pouco. Passou tempo, a ambulância estava a chegar e o PSP ordenou a Ilídio que o acompanhasse à esquadra. Ilídio ficou surdo, fugiu e o guarda teve de correr atrás dele, o guarda e a sua colega Florbela, que sofreu uma rotura no ombro esquerdo ao agarrá-lo.
O guarda contou, de passagem, um pormenor que nos faz desconfiar que Ilídio (de novo descrito como “o mesmo”) também não ficou como estava antes. “… contudo apercebi-me que o mesmo sangrou um pouco pelas fossas nasais, resultante de um soco que lhe desferi em legítima defesa, já que o mesmo me tentou agredir a soco e pontapés”, admitiu o guarda.
Depois vi e ouvi “o mesmo” Ilídio em tribunal, com as fossas nasais pintadas de sangue seco. Disse que não se passou bem como dizia a polícia, mas reconheceu ter passado pelo local “onde uma senhora aparentemente sem quaisquer lesões pretendia que a polícia chamasse a ambulância”.
- Meti-me na conversa. Reconheço que não o devia ter feito.
A seguir pediu desculpa de ter mentido, que não queria fazer mal a ninguém. Ilídio foi acusado do crime de usurpação de funções.
- Não resisti à tentação.
A medalha que mostrou, como insígnia da PJ, era falsa mas não irrelevante. Ou melhor era verdadeira, mas noutro campo da actividade humana. Tinha acabado de a receber na colectividade Alviela, era um prémio e ele estava feliz e comemorava. A insígnia era, afinal, a medalha de campeão de snooker do bairro.
Onde estarás hoje, Ilídio? Não desistas de chegar a ministro na América ou porque não aqui, a dirigir o INEM e o nosso Ministério da Saúde? Não farias má figura.
O autor escreve segundo a antiga ortografia