Para um novo ciclo de políticas culturais no Porto (III)
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Pude assistir no Teatro Carlos Alberto, em janeiro, a uma exuberante versão da “Frágua de amor” de Gil Vicente. No cerne dessa tragicomédia, escrita em 1524, está uma forja prodigiosa que opera a “refundição da portuguesa gente” que nela entra - e sai melhorada. Em tal forja se fabrica “mundo novo”.
Nos últimos anos, sem prodígios ou milagres, a “refundição” acontece diariamente na forja das cidades portuguesas, por obra dos milhares de imigrantes que vieram intensificar a nossa vida nervosa, como diria Simmel, e induzir uma mutação sociodemográfica irreversível. Oriundos dos quatro cantos do Mundo, eles não trazem somente a sua juventude e força de trabalho como transportam as línguas e o património artístico e espiritual dos seus países. A mutação das nossas cidades é também de ordem cultural.
Seria insólito que a política cultural do Porto se mantivesse inalterada perante a “refundição” em curso. Dantes, no Porto, víamo-nos apenas a nós, mas hoje vemos o outro - e vemo-nos outros. Interessarmo-nos pelas conceções e manifestações culturais destas pessoas e levá-las a interessarem-se pelas nossas jogará a favor da sua integração, da coabitação distensa e do “melhoramento” mútuo. A música, a dança ou as artes plásticas têm ainda a vantagem de não carecerem da intercompreensão linguística para suscitarem ressonância emocional e intelectual.
A Câmara tem o dever de modelar as suas políticas culturais em função destes novos residentes, convocando a comunidade artística para um trabalho de prospeção, mapeamento e interação cultural. Pelo seu cunho descentralizado e participativo, o programa Cultura em Expansão é o que está vocacionado para essa missão. Opere-se, pois, na “frágua” camarária, a refundição desse programa que já conheceu melhores dias.
Que não se caia, porém, no paternalismo. Olivier Neveux alerta-nos para esses espetáculos sobre migrantes “em que nunca lhes é permitido dizer nada além daquilo que o Estado e os meios de Comunicação Social reconhecem como o seu discurso e a sua existência” (Ed. Húmus, 2024). Tal como os locais não gostam de ser algemados a atos de contrição por pecados de antanho, os estrangeiros não gostam de se ver esquematizados ou circunscritos ao papel de vítimas.