Para um novo ciclo de políticas culturais no Porto (V)
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O Porto é uma formidável forja de criadores literários. É, por exemplo, a cidade da esquecida Renascença Portuguesa, que visava incrementar a cultura do povo português “por meio da conferência, do manifesto, da revista, do livro, da biblioteca, da escola”. É por isso deveras insólito que a literatura e o livro tenham sido parentes pobres de uma política cultural tão pujante quanto a do ciclo governativo que agora cessa.
Em finais dos anos 90, havia uma Fundação Eugénio de Andrade, um Clube Literário do Porto e até um Museu Nacional da Literatura, na Casa de Ramalde. Não fosse a Universidade do Porto ter montado uma apreciável Casa dos Livros e, hoje, nada haveria. Lisboa, que já tem a Casa Fernando Pessoa e a Casa Saramago, criou, a partir da biblioteca doada por Alberto Manguel, o Centro de Estudos de História da Leitura.
Num dos países da UE onde menos pessoas declaram ter lido um livro no último ano, a Câmara não se podia ter limitado à realização da Feira do Livro e a iniciativas avulsas.
É preciso, entre outros, dotar as bibliotecas de meios para porem os portuenses a ler; conceber um plano de publicitação e conservação das livrarias que nos restam; criar um programa de biblioterapia; reeditar obras inacessíveis de autores portuenses. Acima de tudo, há que trabalhar a leitura a montante, nas escolas, com uma bolsa de escritores e animadores.
As neurociências explicam porque é que o livro impresso é um artefacto regenerador: ele mobiliza a concentração e a memória. O meio digital pulveriza-as, abrindo caminho ao desarranjo cognitivo. O livro oferece a possibilidade de o leitor comunicar consigo mesmo – em vez de com todo o mundo e ninguém. Ele interrompe a conexão tecnológica que nos desconecta da nossa vida interior, resiste ao totalitarismo digital que nos enfraquece o ser e nos aliena simultaneamente do factual e do ficcional.
Através das obras literárias vivemos as vidas dos outros e, assim, aprendemos como viver – ou como não viver – as nossas. Não há nenhuma arte que não se corresponda com a literatura e que esta não inspire. Nos últimos doze anos, a literatura e o livro foram uma ripa da política cultural municipal. No próximo ciclo governativo, devem tornar-se uma trave-mestra.