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Bem, com um título destes bem podemos começar em tom de artigo de especialista sobre a situação internacional. Póquer chinês. Nestes tempos em que a geopolítica internacional cada vez mais se revela dispersa, mergulhada em dúvidas existenciais, erosão de valores, abandono de parceiros fiéis, e quando os conflitos regionais ameaçam com volatilidade e extrema violência toda a paz mundial, e o xadrez das grandes potências, etc. e etc., mais caroço, menos caroço, rebeubéu, pardais ao ninho, enfim, nestes tempos pré-apocalipse o senhor Ji, que tem uma lojeca para os lados dos Olivais, bem podia ter evitado mais uma, não é, acha para a fogueira! Senhor Ji, onde é que tinha a cabeça? O que é que ganhou com isso, 8,5€ por caixa valerá a vergonha de se levantar de manhã para ir a tribunal e, com os seus óculos assustados, responder como criminoso no banco dos réus?!
Mas vejamos o agente da polícia que fez a inspecção ao estabelecimento. Ali está ele a recordar, com os seus braços grossos de totém canadiano. Entrara na loja e, logo ao lado da caixa registadora do senhor Ji havia uns isqueiros Clippers que eram cópias contrafeitas dos originais. Tudo normal. Mas, levantando o senhor guarda os olhos lá mais para dentro, descobrira outros indícios:
– Numa estante, disse o guarda, estavam várias caixas de fichas de póquer. Perguntámos se tinha licença para vender esse produto. E ele disse...
Uma pausa, aqui entra o elemento surpresa tão ao estilo do escanifobético século XXI. Sim, o que é que o cidadão chinês Ji, há 17 anos em Portugal, casado e com filhos que falam português como eu e como os senhores e senhoras que me ouvem, ou me lêem, o que disse o senhor Ji sobre as coloridas fichas de póquer à vista na sua lojeca para os lados dos Olivais? Disse que não sabia que precisava de licença para vender fichas de póquer em Portugal. E a prova do que ele disse vinha do próprio polícia.
– Ele disse que não sabia, que não sabia. Eu acho que ele ficou estupefacto, que de facto não sabia que era proibido.
– E como é que eram essas caixas?
– Eram “sets” com toalhinhas, com fichas, cartas, dados...
Uma dezena de caixas maiores e menores de fichas e todas foram apreendidas e enviadas para Santa Iria, para o Serviço de Regulação de Jogos, para exame. O senhor Ji admitiu que já vendera algumas, tinha-as comprado em Espanha, pela Internet.
E foi convicção – parabéns ao senhor Ji – da procuradora da República, que relembrou o crime de que vinha acusado, venda de material de jogo de póquer, que “depende também da sorte e do azar”, e que o senhor Ji as comprara em Espanha onde a lei é muito diferente, a verdade é que o senhor Ji, o arguido, “revela alguma propensão para o jogo”, como confessara, e o polícia lembrara que ele ficara estupefacto, de maneira que a procuradora pediu a absolvição do senhor Ji por “exclusão de culpa”. Nada mau. Fui atrás dele no corredor.
– Portanto, o senhor não sabia que era proibido em Portugal.
– Não.
– Mas na China é permitido?
– Para brincar, entre amigos, sim. Mas a dinheiro também não.
– Mas estava à espera que os seus clientes jogassem, como dizem os portugueses, a feijões?
– Isso eu não sei. São jogos para os amigos brincarem.
Passaram alguns dias do julgamento, senhor Ji. Vou repetir-lhe o que me disse um polícia furioso no dia em que pus o carro em segunda fila para entregar num minuto um papelinho numa loja. E disse-me ele, e bem:
– Por causa de pessoas como o senhor, é que o Mundo está como está!
*O autor escreve segundo a antiga ortografia