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Espero que o senhor Manuel ainda seja vivo – tenho o belo exemplo do juiz Jorge Tocha Coelho, avô de dois filhos meus, pois este querido sogro ainda há dias nos ofereceu um almoço de peixe fresco na Figueira da Foz porque fez 96 anos — ele é uma seta disparada do século XX para o XXI — e, numa casa forrada de livros que foi refúgio de artistas judeus húngaros fugindo do Holocausto, ainda pensa tanto no Mundo que todas as semanas escreve crónicas, olhem, como eu. O senhor Manuel e o Jorge partilharam a histórica sina de nascer em 1929, ano do crash das bolsas, íncubo do fascismo e do nazismo que estão aí a respalhar-se em força, da Rússia aos Estados Unidos e, se do senhor Manuel não sei se é vivo, Jorge Tocha Coelho continua firme a lutar pela democracia.
Tudo treme nas bolsas de novo, mas ainda não começaram os banqueiros a saltar dos arranha-céus de Nova Iorque; gostava de ver os bilionários das tecnologias, de mão dada com o seu canalha Donald Trump, a saltar para o vazio, antes de destruírem o planeta Terra. Mas voltando ao senhor Manuel, vi-o há anos no tribunal, era mais uma etapa negra da sua vida de euforias, investimentos e quedas em grandes depressões. O senhor Manuel tinha uma dívida de 8000 euros, pagara barras de alumínio com cheques carecas (ainda há cheques?) e desaparecera por dez anos.
– Depois do divórcio, ausentei-me para o Alentejo, onde estive, salvo erro, cinco anos... Só soube dos cheques quando fui contactado pela judiciária...
– Mas foi o senhor que assinou os cheques?
– Fui eu, de facto. Têm as minhas assinaturas, os números, tudo certo. Julgo que foi para alumínios... mas não me recordo de onde era. A razão foi simplesmente porque me ausentei, desorientado com o divórcio, coisas que passei...
O senhor Manuel começara então a chorar:
– ... Eu não gostaria de dizer aquilo por que passei... e quando estive a trabalhar...
No entanto, o senhor Manuel disse aquilo por que passou:
– Eu tive um julgamento em Santiago do Cacém. Eu sou diabético e tive uma quebra e não vi a criança de cinco anos na bicicleta e apanhei-a... Ela foi operada no S. José, mas não se salvou, não se salvou! Apanhei-a na estrada de Sines!
O senhor Manuel tirou os óculos molhados dos olhos piscos e limpou-os. Também ouvia mal, o julgamento era uma berraria.
– Porque é que não paga a dívida?
– Hã?
- PORQUE É QUE NÃO PAGA?
– Eu não pago porque vivo com 224 euros por mês. Eu sou uma pessoa honesta. Eu pago, mas com trabalho! Querem que eu vá para lá trabalhar, eu vou, enquanto tiver saúde! Eu faço o que o senhor juiz disser para eu fazer!
– Ó senhor Manuel, deixar nas mãos do juiz esta responsabilidade não é coisa bem feita! O senhor é que tem de saber o que tem a fazer.
– Sotôr, diga-me o que é que eu tiro para comer dos 224 euros, eu aceito pagar o resto...
O senhor Manuel disse que não tinha mais nada, nada.
– Estive em Angola, onde fui um grande empresário. Vinte e dois anos de Angola e perdi tudo. Tinha 13 camiões-cisterna de 300 litros cada um, tinha carrinhas de caixa aberta a trabalhar para a Diamang, e perdi tudo. Em Lisboa, tive uma grande garagem no Campo Pequeno e perdi tudo, tudo!
A única coisa em alta, na vida montanhosa do senhor Manuel, era a diabetes, antes do julgamento estava nos 280 e tal de açúcar, disse ele. Espero que seja vivo, senhor Manuel, e nós também no mundo que aí vem.
Boa Páscoa.
O autor escreve segundo a antiga ortografia.