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No meio do caminho da minha vida nos tribunais, à porta da selva escura da Justiça, encontrei uma vez um homem que concordava com todos os insultos que a polícia lhe dirigia. Não fazia sentido, o homem era advogado e rico, mas tinha-lhe acontecido uma coisa daquelas que realmente.
– O senhor deve ser muito estúpido, disse-lhe um dos polícias que o prenderam, e o advogado concordou.
– Mas é que o senhor deve ser mesmo muito estúpido, repetia o guarda, e o advogado concordava, era um jovem elegante e amarrotado num fato de seda e falava com o coração.
O advogado fora mandado parar numa “operação stop”, ia num Mercedes de alta cilindrada mas não parou à ordem policial, fugiu pela noite de Lisboa como se fosse o inimigo público n.º 1, e o que se seguiu explica-se também nas palavras do polícia:
– Então o senhor anda no seu carro, não traz droga, não vem armado e causa uma confusão deste tamanho? Eu podia tê-lo matado! Ainda pensei disparar a arma!
Revistaram-no, nada, revistaram o carrão, nada, desconjuntaram as portas, rebentaram os estofos, esventraram a mala, escavacaram o Mercedes novo e nada, nem drogas nem armas, o que o advogado levava era um demónio no coração, bebera uns copos ao jantar com a mulher e percebera que o casamento estava no fim:
– Ando baralhado, estou em processo de divórcio, disse.
Este exemplo do passado cola bem com uma frase que ontem me nasceu na cabeça: alguém que é estúpido ao ponto de pelos vistos é. Uma pessoa ser qualquer coisa ao ponto de pelos vistos ser.
Olho à minha volta no mundo enlouquecido e surgem-me ideias adaptadas: por exemplo, o famoso cantor português que, depois de explicar a todos nós que esteve à beira de se fazer criminoso, com passagem pela prisão, ter encontrado a salvação na música e, afinal, pertencer alegadamente a uma rede de droga. Será Nininho Vaz Maia ingenuamente criminoso ao ponto de pelos vistos ser?
E Andrezinho Ventura, o sr. 30 metros quadrados, será ele pantomineiro político ao ponto de pelos vistos ser?
E José Sócrates não será estupidamente ambicioso ao ponto de pelos vistos é, pensando que nos podia enganar a todos até ao fim com as suas mal explicadas e enormes corrupções?
E Luís Montenegro, primeiro-ministro avençado em casa por casinos sob a sua alçada governativa, mergulhado num jarro de revelações a conta-gotas, não será ele sonso ao ponto de pelos vistos ser? Pelos vistos, tal não é problema para grande parte dos eleitores portugueses... mas isso já não é problema meu.
Ontem foi dia da Vitória na Europa que, 80 anos depois da derrota do nazismo, enfrenta agora a traição e abandono do aliado Estados Unidos, por força de Trump, que é um egocêntrico maníaco ao ponto de pelos vistos é. Hoje, numa Praça Vermelha que percorri em tempos de cabo a rabo várias vezes, Putin irá mostrar o poder imperial nos 80 anos do fim da “Grande Guerra Patriótica”, um homem que em 2022 convenceu os recrutas que invadiam a Ucrânia a levarem a farda de gala para desfilarem três dias depois no centro de Kiev, mas morreram queimados nos tanques, chamemos a Putin napoleonicamente iludido ao ponto de pelos vistos ser.
E Netanyahu, aplicando a receita de cercar um povo, isolar e deixar os palestinianos lutarem entre si por um pouco de comida e água, até à morte, homens, mulheres, crianças, replicando em Gaza um dos métodos nazis no gueto judeu de Varsóvia e no campo de Auschwitz. Cruel, hipócrita ao ponto de pelos vistos é.
No meio disto tudo, no Vaticano foi eleito um papa norte-americano, Robert Prevost, agora Leão XIV, talvez a oportunidade de se evitar que volte tudo para trás na Igreja e haver alguém a pôr um pouco de ordem em Donald Trump. A não ser que o Espírito Santo, que o escolheu, seja brincalhão ao ponto de o novo Papa fazer o contrário de Francisco, mas pelos vistos, ou assim espero, isso ele não será.