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Escrevo esta crónica no alto da serra de São Mamede, Portalegre, e se algum pássaro ou cão ou motosserra entrarem por aqui, não fui eu quem os escrevi, eles andam por aí. Na segunda-feira, 28 de Abril, preparava-me para ir caçar, ou pescar, às vezes é caça, outras é pesca, histórias de tribunal no Campus de Justiça de Lisboa. Portugueses em julgamento. Veio o apagão, não fui, nem os portugueses foram mais julgados nesse dia.
Ao ir buscar o meu filho à escola, já se via nalgumas pessoas aquele ar meio confuso, meio ingénuo, de quem não sabia bem o que fazer: esperar pelo regresso das comunicações, voltar para casa às aranhas ou ir açambarcar supermercados e bombas de gasolina?
Na escola, encontrei um amigo que também vinha buscar os filhos e que seguia logo para o Alentejo, ele estava a ver bem o filme que nos podia calhar:
– Vou fugir já. Lá, tenho energia solar.
Nos últimos meses tenho contado muitos casos que são já consequência criminal das violências do confinamento da covid. Atrasados, chegam agora. Penso agora que, um dia, também poderia ter de vos contar no que teria dado um apagão mais extenso, nos tribunais. Fiz com os meus alunos de cinema o exercício de pensarem o que poderia ter sido uma semana inteira sem luz, água e comunicações. Como tenho um aluno sírio que passou pela violência da guerra, ele pensou que o pessoal, mal ou bem, acabaria por se organizar no meio do caos. Eu não sei se ele já conhece os portugueses, mas ainda bem...
Os antigos diziam “repetita iuvant”, a repetição ajuda, e não levarão a mal que vos repita a minha experiência no cerco de Sarajevo, no Inverno de 1993-94. A guerra na cidade é uma coisa muito estranha. Ali, morre-se de repente com um tiro de um sniper, mas nesta esquina estou relativamente seguro. Morriam naquela altura uma média de 14 pessoas por dia com bombas (por granadas, como diziam as pessoas); nunca se sabia onde é que as bombas caíam. Com Gaza e com a Ucrânia, temos visto isto numa escala que nos pareceria inimaginável na altura.
Frio, um gelo brutal, apanhava-se –25º Celsius, as pessoas queimavam as árvores da cidade, como tinha acontecido antes em Estalinegrado. Desapareceram os gatos...
Quando eu estava em Split, na Croácia, para embarcar para Sarajevo (o que era difícil), perguntei a algumas famílias o que poderia levar, caso pudesse levar alguma coisa para ajudar. A primeira parte da resposta não foi surpresa: pediram-me para levar cartas.
Mas outra coisa que me pediram foi que levasse cosméticos para as senhoras, e detergentes e desinfectantes para a higiene íntima das mulheres. Batons, rímel... Imensos. E eu pensava que devia ir cheio de queijos e de atum, e explicaram-me que não: o mais importante, nessa altura, era precisamente levar coisas que dessem uma imagem humana, que trouxessem dignidade às mulheres.
Esta foi uma grande lição que eu tive. E porque anos antes tinha estado, ainda jovem, a fazer Interrail, a conhecer a cidade, e vira Sarajevo inteira e em paz, percebi que, da civilização à destruição, são dois passos que se dão.
Mas pronto, em Portugal foram só dez horas de apagão e o único crime, por assim dizer, tragico-cómico a que assisti esta semana foi em São Bento: um primeiro-ministro a descelebrar ao mesmo tempo o 25 de Abril, Dia da Liberdade, e o 1.°º de Maio, Dia do Trabalhador, cantando ao lado de um plagiador confesso uma canção plagiada. Mas sonhos de menino como ser um rico primeiro-ministro ou um primeiro-ministro rico, são já outras cantigas.
O autor escreve segundo a antiga ortografia