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Estive quase a usar o nome verdadeiro de Armando, o carteiro merecia este crédito: criou o mais lindo argumento jurídico sobre dar a camisola e o fim da amizade que alguma vez se inventou em língua portuguesa. Antes, Clara, a outra arguida, confessava:
- É verdade. Foi por uma dívida que o meu marido tinha com o Armando. Deu-lhe a ele dinheiro quando ele precisou, 300 euros, e depois veio pedir um favor. Eu não sabia que o dinheiro pertencia a outra pessoa. Disse apenas que era uma pessoa do Brasil que precisava de lhe mandar dinheiro.
- E não desconfiou disso? Ainda por cima ficava uma dívida paga... É que para efeitos de confissão, isso não chega.
Clara foi a uma loja de câmbio de dinheiro no Centro Vasco da Gama, em Lisboa, levantou 2360 euros porque o dinheiro, para despiste, fora convertido em dólares, e pronto, Armando recebeu o dinheiro e perdoou a dívida de 300 euros.
- A dívida era do quê?
- O Leonel era dependente químico.
- Droga, é isso?
- Exacto. Cocaína.
- A senhora percebeu que era para fazer um crime?
- Sim, claro, admitiu Clara, finalmente.
- Ainda por cima para uma dívida de droga. Tudo ilícito.
- Sim. Ele disse-me que estava um rapaz no Brasil a tentar decifrar os códigos, que deviam ser do outro senhor.
Ao todo, o esquema de fraude bancária roubou em poucos minutos 6200 euros a Luís, a vítima, que teve que enfrentar meses sem dinheiro e a desconfiança de que era autor do seu próprio roubo. O desvio foi partido em três parcelas e transferido por três contas em Portugal, para levantar imediatamente, como fez Clara com Leonel. Armando é que controlava tudo. Só que Armando entrou chocadíssimo na sala de tribunal:
- Para mim, isto é uma história surreal. Mesmo surreal. Eu não conheço ninguém, não conheço as pessoas... Eu estou!...
- Não tem nada a ver com isto?, perguntou a juíza.
- Não, sinceramente não! Nunca recebi dinheiro nenhum. Eu só tenho dinheiro na conta que é do meu ordenado.
- E esta senhora que aqui está sentada, não a conhece?
- Não a conheço de lado nenhum.
- E um senhor chamado Leonel?
- Também não. Não o conheço de lado nenhum. Eu trabalhei numa carrinha dos correios que andava pela Bobadela, São João, Vale Figueira, Santa Iria, Sacavém, aqui a Expo com um furgão grande a fazer CTT, se a sotôra for ali à Bobadela, a toda a minha zona de influência, toda a gente sabe quem ele é, Armando o carteiro, toda a gente me conhece!
- Então porque é que acha que está aqui?
- Não sei. É surreal.
Então a procuradora pediu para ouvir as declarações que Armando fizera no primeiro interrogatório com juiz. Olhei para Armando, que se torcia enquanto se ouvia dizer que, afinal estava a almoçar um bife numa cervejaria, entrou o amigo Leonel, que precisava de uma ajuda, foi com o Leonel e a Clara ao centro comercial só para os ajudar... Fim da gravação e a juíza, também ao vivo:
- Disse, há pouco, que não conhecia nenhuma destas pessoas.
Foi aí que Armando mostrou o seu talento no improviso:
- Sotôra, eu tenho uma maneira de ser, um feitio... ou defeito. Eu tiro e dou a minha camisola pelos meus amigos! Mas se me fizerem alguma coisa, não os conheço mais! Nem quero conhecer!
- Não vamos aqui brincar, disse a juíza.
Armando já tinha uma condenação antiga por fraude. O Ministério Público pediu cinco anos de prisão para Armando, é surreal, não é?
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)