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Naqueles dias, dizia a mulher na cadeira das testemunhas, andava toda a gente de ânimos exaltados, sempre aos gritos, era comum termos de falar com pessoas muito enervadas.
Eu tinha acabado de entrar na sala e agora procurava uma cadeira para me sentar e um tempo histórico em que me situar. Quando é que andávamos aos gritos, não é mais ou menos desde sempre e em toda a parte, da televisão ao Parlamento, das estradas e transportes públicos à má imprensa, à péssima música? Felizmente Helena, a mulher na cadeira das testemunhas, explicou que a coisa aconteceu “no mês de Dezembro, durante a covid”. É verdade, se bem me lembro, se nos lembramos todos, foram tempos com uma dose de nervoseira adicional.
Morriam pessoas nos quartos dos hospitais, fechavam-se as famílias em casa, e sair para cumprir um serviço absolutamente necessário, durante o confinamento, era uma aventura.
Foi no Natal de 2020, há quatro anos, e a mulher, funcionária de balcão, não esquece que nesse dia lhe caiu um céu acrílico em cima da cabeça.
Eu aproximo-me assim mais dele, para me ouvir explicar mais uma vez, com ele aos gritos, então dá um murro, partiu-se tudo e caiu em cima de mim . Sinto um ferro a cair na cabeça. O acrílico da protecção da covid partiu-se todo, acho que ele me queria dar o murro a mim.
O homem acusado não compareceu hoje, no seu julgamento, quatro anos depois. Nada explicou sobre a ausência, até o seu advogado deixou pendurado e, no fim, a procuradora do Ministério Público ordenava que um tal Alberto S. fosse procurado pelos serviços de identificação da República, seja ele cidadão nacional ou estrangeiro, para vir a este tribunal, nem que seja à força. Alberto não será muito difícil de identificar: no momento do crime, foi filmado na agência da Caixa Geral de Depósitos da Rua Morais Soares, os fotogramas da acção estão impressos no processo, em vários passos. Lá está ele a avançar na fotografia.
Mas seria o quê, uma tentativa de assalto? Não andávamos todos de máscara, iguais os irmãos Dalton na profissão de esvaziar cofres?
Qual a razão que levou Alberto S. a ser detido pela polícia, já na rua, quando fugia depois do murro na protecção acrílica do balcão bancário, destruindo os plásticos e fazendo cair um ferro de suporte na cabeça de Helena, provocando-lhe um lanho ensanguentado, muito choro e lágrimas?
Parece que o homem tinha esperado a sua vez lá fora, naqueles dias só entrava uma pessoa de cada vez nos bancos, as portas estavam vigiadas contra a aglomeração de vírus e, quando deu por isso, não trazia na carteira o cartão de cidadão. Esquecera-se do cartão. Mesmo assim, Alberto queria levantar o seu dinheiro, no Natal precisamos dele, no Natal e no resto da vida, não há dia sem coisa para comprar, e Alberto começou a enervar-se quando Helena lhe explicou uma, duas, três vezes que não podia dar-lhe o seu dinheiro sem cartão de identificação.
Consequências: Alberto, apesar de tudo, foi devidamente identificado na Polícia, até porque já tinha ficha com o nome dos seus pais, a morada oficial, etc., e Helena arranjou um problema nos nervos de que ainda hoje não se levantou.
Pedi transferência várias vezes daquela agência, disse Helena, mas não ma quiseram dar, tive de ir a uma psicóloga, por não me terem mudado de local de trabalho tive de meter baixa por seis meses. Entretanto, pedi a rescisão. A mulher tocava na testa, no antigo lanho daquele dia, ou no sítio dos pensamentos.
Ainda hoje existe o trauma, disse ela.
Entretanto, é Dezembro outra vez.
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)