Um museu do liberalismo na casa de Almeida Garrett
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O liberalismo oitocentista foi o grande movimento emancipador do indivíduo face às tutelas morais e religiosas que milenarmente o tolhiam. É dele que descendem a separação de poderes, a igualdade jurídica, a liberdade de imprensa ou mesmo o princípio da descentralização. Irreverente e destoante, não terá sido por acaso que, em Portugal, o liberalismo tenha sido um fenómeno portuense antes de ter sido um fenómeno nacional, ao mesmo tempo que nos ungia de europeísmo. A Revolução de 1820 foi a nossa única revolução descentralizada que se saldou em triunfo, deixando marcas inapagáveis no património e na têmpera dos portuenses.
Compreende-se, pois, que em 2019 a Câmara tenha aprovado por unanimidade uma proposta da CDU para instalar um museu do liberalismo na casa onde nasceu Almeida Garrett, na Rua do Dr. Barbosa de Castro. O Executivo acabaria por recuar na compra, por considerar excessivo o preço do imóvel. Veio 2020 e a Câmara comemorou com brio os 200 anos da Revolução Liberal. Mas nada ficou de perene e, finda a efeméride, a memória do liberalismo portuense retrocedeu para o mundo académico. O PS recuperou a proposta em 2022, na Assembleia Municipal, só que, desta vez, a recomendação foi chumbada.
É um mistério que o Porto não possua um qualquer espaço museológico que evoque essa memória fecunda, numa altura em que até em países europeus a separação de poderes afrouxa e o credo iliberal faz caminho - também nos E.U.A., como se vê. Cidade de ousadias mas também de grandes teimas, o Porto ainda se porta, nalgumas coisas, como o “grande aldeão” figurado por Garrett no poema “As férias”... Sabe-se agora que a mesma casa volta a estar à venda. Eis a oportunidade. Em alternativa, crie-se o dito museu num imóvel municipal, como centro de reflexão sobre a experiência liberal de oitocentos, as suas repercussões e continuidades, ancorado no pensamento político e na obra de Garrett.
O autor das “Folhas caídas” carregava uma mágoa que nada tinha de lírico: o não ter sido eleito deputado pela sua terra, como confessou numa carta de 1838. Remedeie-se, simbolicamente, essa clamorosa injustiça, que “o povo há de aplaudir, porque entende” (reaproveito uma frase de Garrett na “Memória ao Conservatório Real”).