O ano acaba e o governo da maioria - ou a maioria do governo, porque onze já se foram - continua, mais ou menos. Agora é como um prédio cheio de problemas. Gastos imprevistos, obras inacabadas, passados obscuros, esbulhos do património, atas aldrabadas, desaparecimento súbito dos inquilinos e notícias inacreditáveis nos jornais da paróquia. O governo parece uma reunião de condomínio que começa bem, passa para gritos e portas a bater e termina à estalada no átrio. Vizinhos-ministros que se detestam.
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Foi por isso que me lembrei do caso do prédio de Azeitão. Bofetadas e ameaças entre a condómina do último andar e o casal do primeiro-direito. A principal testemunha deste caso era a vizinha do prédio ao lado, uma jornalista que estava a escrever em casa quando ouviu barulho. Magra, de bons olhos e ouvidos. Mas, como viria a descobrir, o Ministério Público não acreditava nela.
- Quer descrever o que se passou?, começou a procuradora.
- Descrevo livremente?, perguntou a jornalista.
- A senhora doutora não a está a coagir, disse a juíza.
A jornalista começou:
- Nesse dia ouvi uma altercação. Morei muitos anos no mesmo prédio, agora vivo no prédio ao lado e trabalho com as janelas abertas porque sou um pouco claustrofóbica.
Na rua, ecoando como uma canção desafinada, pessoas aos berros.
- Vim cá para fora para saber se era preciso alguma coisa. Estava a Ana cá fora e estavam os ânimos muito exaltados, o que era frequente.
- Viu agressões?
- Eu nunca vi agressões, mas ouço ameaças de agressões, porque as pessoas se exaltam muito. As pessoas exaltadas. O que eu percebi é que o Luís, que é uma pessoa muito calma, disse "a senhora não bate na minha mulher!"
- A senhora ouviu isso?, desconfiou a procuradora.
- Ali ouve-se tudo. Às tantas já havia polícia, o que também era recorrente.
A grande e antiga discussão andava à volta da porta do prédio, aberta durante o dia porque no último andar há um sindicato. Os dirigentes do sindicato querem a porta aberta, alguns inquilinos exigem que esteja fechada por segurança e por inundações do átrio.
A senhora lá de cima é a do sindicato e foi esta que pôs a queixa contra o casal de baixo, por agressão.
- Mas o que é que a levou a descer para a rua assistir a isto?
- Se calhar foi o meu vício de jornalista. Se há barulho, vou ver. Aliás, naquele bairro vem sempre tudo ver. Vêm do café, toda a gente. Fui para o outro lado da rua.
Mas a procuradora duvidava de como podia ela ter visto e ouvido. Isto é, a jornalista estaria ali, em directo, a dar notícias falsas a favor dos réus, o casal do primeiro andar, o que exige a porta fechada.
- Mas porque é que foi para o outro lado da rua?
- Porque era onde via melhor!
- Mas se era a cena que queria ver, porque é que foi para o outro lado da rua?!
- O outro lado da rua, se calhar, é menos do que daqui para aí!
- Pensei que a senhora, como jornalista, conseguisse explicar-nos o que viu com mais precisão...
- Para isso eu tenho o fotógrafo! Tenho a imagem de um senhor com esta mão no ar! Já sou eu a supor que havia qualquer coisa que se tinha passado antes. Ouvi apenas o senhor Luís dizer: "A senhora não bate na minha mulher!"
Então foi o advogado da senhora do sindicato a gritar:
- Não viu o senhor Luís a pôr a mão na cara da queixosa?
- Não.
E dali não se saiu. E ao sair, a jornalista explicou o espaço social:
- Estamos a falar de uma rua em que, na minha casa, se eu me rir, toda a gente percebe!
Toda a gente percebe. É o que se passa na rua do PS, quando a maioria se ri, a gente percebe.
Feliz Ano Novo.
o autor escreve segundo a antiga ortografia
*Jornalista