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No livro de Mário Soares que reúne os seus textos sobre escritores portugueses, “Incursões literárias” (2003), há uma confissão que nos tira o tapete das ideias feitas sobre a sua extraordinária personalidade: “é certo que sempre tive, talvez, uma visão literária da vida e das personagens, romanescas ou não, que encontrei no meu caminho. Adquiri o hábito de inventar histórias, totalmente ficcionadas, de pessoas que conheci e, por esta ou aquela razão, me interessavam”.
Uma visão literária da vida é a antítese de uma visão tática, linear, utilitária. É uma visão narrativa, que imagina e prefigura. Que transcende o imediato. Que efabula o fugitivo lugar do eu e do outro. Que puxa pelos fios soltos do real para ver a que outros reais levam. E a que futuros.
Soares não foi só a nossa melhor síntese do estadista e do idealista. Ele foi um intelectual que leu e escreveu muitíssimo. A sua formação política fez-se na resistência antifascista, nas prisões e no exílio, como se fez na leitura compulsiva de ensaios e romances. Fosse ele homem de outros hábitos, teria sido um autor maior do romance do Portugal contemporâneo?
Ética do consenso e da discussão. Cultura histórico-literária. Inteireza nas qualidades e nos defeitos. Respeito pelo adversário. Grandeza na vitória e na derrota. O que sobrevive de Mário Soares no partido que ele fundou e modelou para encaixar na realidade do país e não numa qualquer gaveta litúrgico-ideológica? Não é irónico que um partido criado por intelectuais no exílio se encontre hoje depauperado de intelectuais?
O PS não brotou de um movimento laborista ou sindical. A sua idiossincrasia é o reflexo da idiossincrática personalidade de Mário Soares: a calda anteriana do PS de 1875, o mosto republicano, o tempero seareiro, os sais da social-democracia nórdica. Desta amálgama nasceu um socialismo “liberto do entulho”, como dizia António Sérgio. Quantos, no PS, se reconhecem hoje nesse ideário compósito e complexo, nesse socialismo impuro? Quantos, da nova fornada, terão lido o “Portugal amordaçado”? O que vale ainda o soarismo no partido de Soares? No centenário do seu nascimento, o melhor tributo à sua memória, por parte do PS, seria procurar respostas a estas perguntas.