Corpo do artigo
Um homem olha da sala do tribunal para a rua. Tem um corpo sólido de enfermeiro e parece matar o tempo a observar os telhados. De repente os ombros dão um salto e vê-se que está a engolir soluços em série e que tem as mãos molhadas de lágrimas. Acaba de ser absolvido mas, quando uma pessoa lhe dá os parabéns, ele responde: - Já foi tarde demais.
A queda oficial do enfermeiro David começou seis anos antes, no relatório da enfermeira-chefe do hospital: “Cerca das 9h00 observei o doente, tendo-me parecido tratar-se de uma lesão traumática da zona peri-ocular direita, e ainda duas pequenas incisões na zona lateral esquerda do pescoço”.
Um doente apareceu com uma lesão traumática num hospital. Não há nada de mais banal. Mas só depois começa a matéria da acusação. Desde esse dia, o enfermeiro David teve que lutar contra a suspeita de um acto “repugnante”, como lhe chamou o procurador da República. Porque: o doente sofreu a lesão dentro do próprio hospital; era um velho de 87 anos e estava na cama paralisado, em coma vigil (morreu um mês e meio depois, de doenças de velho); foi tirado da enfermaria e levado à noite para uma arrecadação, uma antiga enfermaria, e alegadamente agredido por quem devia tratar dele, o enfermeiro. O relatório continuava: “Dada a situação clínica do doente e o seu estado de dependência à mobilização, não me parece fácil que o traumatismo tenha ocorrido por modo próprio ou pelo menos sem que os enfermeiros se tivessem apercebido de algum incidente.” Depois citava uma exclamação de outra enfermeira: “Parece que alguém agrediu o doente!”. Tudo isto corria na direcção de um homem. “No serviço começaram a surgir rumores de que o doente foi agredido pelo enfermeiro David”, terminava o relatório. A verdade existe nas sobras da calúnia, ou é o contrário? Porque David levou mesmo o velhote para uma arrecadação, a meio da noite. Era um daqueles doentes que não falava, só dava “ais” consecutivos, quando a alma de um velho sente que está por um fio. Mas o enfermeiro disse que o tinha levado para a sala dos enfermeiros (onde nem cabia uma cama). Depois desta mentira, todos os seus argumentos estavam coxos para o que se seguiu. David esteve suspenso 18 meses, sem vencimento. Entrou em cena o senhor Silva. Era um doente da mesma enfermaria do velhote.
- Eu vi-o, com os olhos que me há de comer a terra, bater no senhor! Com as mãos dele! “O senhor cale-se, que barulho!”, e eu digo a mim próprio “eu não acredito no que estou a ver... Deixá-lo lá, sem que os outros doentes se queixassem, às escuras, parece que é um bocado maldoso.... Mas o advogado começou a interrogar o senhor Silva e todas as observações ficaram numa névoa.
- Falou em lesões nos olhos. Ele tinha lesão nos dois olhos? - Sim, e no pescoço. - Nos dois olhos? - Não sei se foi nos dois, se num... O senhor Silva também utilizava sem critério as palavras estalada, soco e murro. Mas estaladas ou socos? - Estaladas. À polícia, o senhor Silva dissera socos. E o advogado continuou:
- É porque o doente aparece com as equimoses que o senhor diz que ele foi agredido, não foi? - Foi, pronto! - Mas agora diz que viu bater sem dúvida nenhuma! O velhote podia ter-se magoado sozinho, batido em qualquer coisa, na sua imensa fragilidade. O enfermeiro David foi absolvido por falta de provas, mas disse que vinha tarde demais.
O autor escreve segundo a antiga ortografia

