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Não te apresses a julgar os outros. Espera. Paulo começa com a sua detenção em Lisboa. Uma anedota perfeita:
- Senhora doutora juíza, eu confesso que realmente bebi vinho e por minha própria e livre vontade quis conduzir o carro porque necessito do meu carro para trabalhar e foi no hospital de Júlio de Matos, onde eu estive na consulta com o dr. Miguel. Próximo da saída, mas ainda dentro do hospital, a polícia mandou-me parar, pediu a minha identificação e perguntaram se eu tinha bebido e eu disse que sim, infelizmente, confesso, é verdade e, mesmo assim, conduzi o carro porque necessito do meu carro.
Estacionara junto da unidade de alcoologia, bêbedo, e bêbedo saía do hospital. 43 anos, cara de rapazinho. Mas espera, espera. Donde é que Paulo veio? Do mundo a girar, do vórtice do mundo. A morte, um prodígio em marcha.
- Antigamente, eu não bebia álcool, se bebesse era pontualmente, moderadamente, e nunca bebia álcool antes de conduzir. Mas a minha mãe morreu, poucos meses depois eu fui à Ucrânia para visitar a minha filha, a mãe da minha filha é ucraniana e levou-a para lá e eu todos os anos vou visitá-la. Na Ucrânia, como não havia electricidade, devido aos ataques da Rússia, eu ia comer aos restaurantes que estivessem abertos. E nos restaurantes é que... os ucranianos perguntavam quem eu era e eu - “eu sou português” - e eles lá oferecem um copo com água. Não é água, é vodka ucraniana. E eles diziam logo “Slava Ukraini”, e eu “”heroiam slava”, que é glória à Ucrânia e aos heróis...
Um soluço grande, Paulo está a chorar:
- E... peço desculpa, custa-me... estou a pensar na minha filha, tenho muitas saudades dela... e então, devido...
- Acabou por se habituar mais a beber nessa altura, diz a juíza.
- Exacto, porque os mísseis russos atacam à noite e então as sirenes dos bombeiros tocam à meia-noite, às duas da manhã, quatro, e uma pessoa não consegue dormir. Eu e os ucranianos temos de ir para caves, sítios subterrâneos, metro. Então eu entrei numa falta de sono, não conseguia dormir, estava muito mal e percebi que, ao beber a vodka ucraniana, eu conseguia dormir. Foi aí que me habituei a beber álcool.
Esteve lá três meses, regressou em Março de 2023. Assim que chegou a Portugal, Paulo inscreveu-se nos alcóolicos anónimos. Ali, indicaram-lhe as consultas no Júlio de Matos.
- Em Março entrei nos alcoólicos anónimos e em Abril comecei a ser seguido. Gostava de acrescentar que o dr. Miguel é psiquiatra e disse para eu não parar imediatamente de beber, ir reduzindo, reduzindo, reduzindo...
- Isso é como quem fuma, diz a juíza.
- Exactamente, porque o corpo pode entrar em...
- ... em descompensação, é como qualquer droga.
- Sim, o corpo pode entrar em delirium tremens, exactamente. Foi nesse dia 18 de Abril de 2023, quando a polícia me mandou parar, e foi a primeira e única vez que a polícia me mandou parar e tinha bebido álcool... e apanhei um susto tão grande... fui à esquadra e nesse dia eu parei completamente. Nas duas semanas a seguir foi muito difícil, o meu corpo tremia todo, mãos, braços, pernas, e o doutor disse logo: “Paulo, nunca vai ao supermercado comprar vinho, o vinho que tiver em casa, dá a outras pessoas ou coloque no lixo.”
Na terceira e quarta semana começou a tremer menos. Voltou a trabalhar, fazendo pequenas obras em moradias espalhadas pela Grande Lisboa. Para isso, precisa do carro. O médico passou esta semana um atestado: Paulo está a conseguir. E a filha? Este ano, afinal, não vai conseguir vê-la, é o avanço dos russos, e foi ao falar da menina na guerra que Paulo chorou pela segunda vez. Slava.
O autor escreve segundo a antiga ortografia