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O nome da mulher começa por S. e ela tem um filho com o mesmo nome do pai, que tem dois nomes próprios seguidos. Assim, sempre que chama o filho, está a dizer alto o nome do seu agressor. Hoje ela está sozinha.
- E não temos, precisamente, o senhor..., começa a juíza.
- Ele trabalha nas obras e dizem que não atende quando está a trabalhar, responde a advogada.
No banco das testemunhas está S., calças de linho branco, camisola amarelo-girassol, pele castanha. Nasceu em 1990. Casou em 2011.
- Ainda é casada?
- Sim, com esse senhor.
- Já não vive com ele?
- Não. Desde o ocorrido, não mais, foi no mesmo instante.
As primeiras perguntas a uma testemunha - a vítima ou alguém que assistiu a um crime - são feitas pelo Ministério Público. A Procuradora pergunta a S. em que dia tinham ocorrido os factos.
- Não me lembro do dia exacto, disse S. Foi há dois ou três anos.
- Acha que era Inverno ou era Verão?
- Não me lembro. Foi em Santa Apolónia. Nós vivemos em muito lado. No Marquês de Pombal, no Campo Mártires da Praia. Passávamos sempre de um quarto para o outro, de pensão para pensão, porque ele é alcoólico e quando bebe... Às vezes ficávamos a dormir na rua. Ele, quando bebe, torna-se agressivo, tem comportamentos inadequados, e acabávamos sempre expulsos. Metia-se em confusões com outros inquilinos, partia coisas tanto dos outros como nossas.
- O quê?
- Partia vidros, portas, janelas, tudo.
- Como é que a tratava a si?
- É um bocado delicado. Muito mal.
- Mas diga. Chamava-lhe nomes?
- Posso dizer?
- Tem de dizer.
- Vaca, puta, nenhum homem te quer. Ofendia os meus pais. Ameaçava que me matava.
Agora, S. tem de explicar mais.
- Ele dizia: estou mesmo a tratar das coisas para te matar. Eu comecei a ter medo quando vi uma pistola lá em casa. Nós na altura vivíamos em casa de um tio e havia um rapaz e ele ficou com ciúmes e confrontaram-se os dois e eu tive de me meter no meio. Ele não tinha licença para ter a arma.
- Como é que descobriu a pistola?
- Eu vi nas coisas dele. Falei com ele. Mas no dia seguinte já não tinha e disse que a dera a uma sobrinho de 19 anos.
Foram muitas ocasiões, diz a mulher, ela até perdeu a conta, foi praticamente o casamento todo. Uma vez, encostou-lhe uma faca e um garfo ao pescoço, como se fosse cortar carne.
- Ele não bebia quando eu o conheci. Mas quando começou a beber, foi logo. Eu dizia que o ia deixar, ele dizia que me tirava o menino.
Agredia-a com o cabo da vassoura, chegou a partir-lhe o nariz (lembra-se agora de que estava grávida de dois meses).
- Eu caía no chão para ele não me bater. Não me mates! E ele : é para te matar mesmo, é para te matar. Parece que ele se transforma, os olhos ficam vermelhos. Eu não sou de discutir com um homem. Era ele que vinha, uma frustração, não sei.
- Quando é que ele lhe cuspiu na boca?
- Não me lembro de quando foi.
Daí a pouco, a mulher diz:
- Eu vi que, se não me separasse dele, eu ia sair de lá morta.
- E a senhora nunca o agredia a ele?
- Não, porque eu sou doente. Tenho esclerose múltipla. Sofro de ansiedade e depressão. Tenho uma dor de cabeça constante.
O ainda marido não apareceu no dia do seu julgamento, estava a trabalhar nas obras. Têm um filho pequeno com o nome do pai.
O nome desta mulher começa com a letra S. Ao ouvir a sua diáspora por Lisboa, de quarto em quarto de pensões baratas, sempre expulsa, às vezes na rua, pensei que podia chamar-se Solidão.
*Jornalista