É estranho ouvir falar sobre o futuro de um completo desconhecido, que ainda por cima não está presente. Tem-me acontecido no tribunal, quando um arguido não aparece no seu próprio caso, e a sensação é a de que nos estamos a meter num assunto grave que não nos diz respeito sobre uma pessoa sem cara.
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Quanto a João, consegui saber alguma coisa: é português, tem 30 anos e problemas com a justiça, nenhum deles muito importante. Só que o crime também se faz por acumulação de erros, e a juíza estava preocupada com a ausência. Virou-se para o funcionário:
- O senhor não disse nada, não avisou? Ele está devidamente notificado?
- Sim.
A juíza virou-se para a advogada, nomeada pelo tribunal:
- A sotôra não sabe se ele ainda vem, não sabe onde ele está?
- Não, meretíssima.
A advogada, na verdade, nem o conhecia. Vinha só substituir uma colega, e nem é provável que a colega conhecesse João.
- Um toxicodependente e sem-abrigo, suspirou a juíza. Vamos dar-lhe mais 15 minutos a ver se aparece.
João, condenado anteriormente a um ano e dois meses de prisão, mas que foram suspensos, nunca aparecera para cumprir o plano social e médico de reabilitação. Voltou à vida nas ruas. Agora, competia ao tribunal decidir se ia mesmo para a prisão.
- É que isto são só umas latas de atum! Eu também não tenho vontade de o mandar para a prisão só por causa disto.
Dito tal, como é de compreender, fez-se silêncio nos tectos falsos do Campus de Justiça. Atum, latas de atum no supermercado. Foi em Abril de 2020, no pico da primeira pandemia. Um quarto de hora depois, a juíza regressou. Pediu ao Ministério Público o cadastro de João, a ver se há mais processos em curso. Em Maio, João será trazido pela polícia, algemado. Isto é, se o encontrarem.
Consegui saber mais sobre ele. Dozes páginas de registo criminal, uma vida de pequenos crimes, nada de violência, nada de crime de tráfico, apenas furto, furto, furto e mais furto. Mas era um atum pesado: 22 latas de conserva Tenório, 32 de Bom Petisco numa mochila. 103 euros, na altura. Será que João só come atum? Ou é um, por assim dizer, toxicoatuneiro? E lembrei-me de um caso antigo. Há 30 anos, era o furto de caldos Knorr. Estava João a nascer, ou a ser amamentado (terá bebido leite da mãe, houve um pai que o levou à escola?), quando escrevi "O escabroso caso do tráfico de caldos Knorr".
- Há fases em que é pilhas de rádio, lembrava então a juíza.
- Já é a quarta vez esta semana!, desabafava o procurador.
E eu, na altura, escrevi: os caldos Knorr estão com saída. Um fenómeno inquietante. É fácil imaginar um tenebroso mercado negro de caldos Knorr, inundando a nossa sociedade de... de... de quê, Virgem Santíssima? [e onde fui eu buscar esta expressão que não uso?] Inundando-nos de canja de galinha? Torna tudo mais apetitoso?! E a juíza suspirava "o valor é ridículo... tudo isto é ridículo." Ridículo mas lógico. Os toxicodependentes de há 30 anos furtavam seis pacotes de 24 caldos, iam ter com os, enfim, "receptadores de caldos", e trocavam por um panfleto de heroína. Não sei se o caso de João será igual, 30 anos depois. Há fome por aí e, com a pandemia e a desgraça inflacionária dos preços dos alimentos, quantas vezes já vimos nas prateleiras de supermercado as latas de atum com um alarme, transformadas em produtos de luxo, como whiskies ou jóias vigiadas? João, diz qualquer coisa, e na próxima vez aparece no tribunal, é a última oportunidade de não ires preso. E trata-te, deixa de consumir, hum, atum.
*Jornalista
o autor escreve segundo a antiga ortografia