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Numa das suas últimas crónicas, Pedro Norton referia que os líderes europeus já não têm recordações da guerra. E, poucos dias depois, Paulo Rangel admitia, em entrevista, que a Europa não está livre desse cenário. Ambos conhecem as raízes da integração europeia que teve como objectivo primordial evitar que ele se pudesse repetir, ainda que nenhum deles tenha idade para se recordar desse tempo. Quer isto dizer, em suma, que o problema dos líderes europeus não é geracional: é qualitativo. Ou seja, somos hoje geridos, e não governados por gente que terá as suas qualidades, que é vendável em termos mediáticos, que tem uma cultura tecnocrática, mas a quem falta a perspectiva histórica.
Por outro lado, os mais velhos, os estadistas que viveram o suicídio da Europa, que a reconstruíram a partir das cinzas, e que nos vão alertando para o risco de um colapso do sonho europeu, não foram capazes de construir uma fortaleza que fosse além dos tratados de livre comércio e de livre circulação. Enquanto durou a Guerra Fria, a ameaça comum contribuiu para a coesão. Depois, quando a cortina de ferro caiu, a reunificação alemã e o alargamento a leste passaram a ser prioridades estratégicas, em que o voluntarismo se sobrepôs à equação dos seus custos, em que a urgência não permitiu que as regras da convivência fossem ajustadas a um aumento tão significativo de estados-membros. E, quando se avançou para a moeda única, deu-se um passo em frente, e sem recuo, olvidando que a união monetária dividia os estados-membros entre aderentes e não aderentes, o que era contraditório com um projecto que exigiria, sempre, um aprofundamento da integração, e que uma mesma moeda dificilmente serviria para economias tão díspares, se não houvesse um orçamento federal. Por essa altura, contudo, essa nova Europa, transformada numa torre de Babel, já fora assaltada pela dúvida. O federalismo europeu, que equilibraria os interesses entre estados tão diversos, ficou na gaveta, e até a raiz greco-romana e a influência judaico-cristã foram esquecidas no Tratado de Lisboa, um difícil consenso que não supriu a falta de uma ordem constitucional.
Por tudo isto, a União Europeia é uma aliança envergonhada, sem uma estratégia de defesa comum, sem posição consensual nas grandes questões mundiais, feita de um equilíbrio difícil entre interesses egoístas dos estados-membros, à mercê de populismos nacionalistas e oportunistas. Temos uma Europa em que só a burocracia é transnacional, e que não foi capaz de construir uma nova soberania que substituísse aquela que foi subtraída aos seus estados-membros, uma entidade pela qual nenhum dos seus cidadãos parece capaz de verter o seu sangue, se ela estiver debaixo de uma ameaça externa convencional. E, por isso, não admira que os seus cidadãos se recusem a fazer sacrifícios mútuos perante uma ameaça interna de desagregação. Esta Europa não passa de um rebanho sem bons pastores, que se desagrega logo que o pasto escasseia.
Foi neste quadro que decorreu a Cimeira Europeia, para tentar encontrar uma solução para a crise da dívida soberana. Na realidade, o que se joga é muito mais do que a sorte dos gregos. E, para além das medidas de urgência que foram adoptadas, e que são úteis no curto prazo, há sintomas de que o isolacionismo de Merkel começa a ceder. Para além das críticas de Kohl, a oposição mostra-se favorável à emissão dos "eurobonds", as obrigações que garantiriam o acesso aos mercados financeiros de países com problemas das dívidas soberanas e acabariam com a especulação financeira. Nos próximos meses, os líderes europeus terão de decidir entre aprofundar a solidariedade entre estados, ou permitir uma sucessão de crises nacionais da dívida soberana. Neste caso, teremos um cenário de dissolução, com a perspectiva de conflituosidade futura que ela acarreta, como o passado nos ensina. À falta de outro argumento, só o medo do caos, que está à espreita, nos pode salvar desse cenário.