Iniciei a minha atividade clínica nos anos 80, fazendo verificações domiciliárias de doenças como médico de uma delegação de saúde do distrito do Porto. Ao andar por algumas das zonas mais pobres do distrito, observei um costume que me deixou atónito.
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Quando alguém pisava um prego e se magoava, era habitual espetar uma cebola no prego em causa para evitar que a ferida se agravasse. Por seu turno, a ferida em si era negligenciada, merecendo quase nenhum cuidado e muito menos tratamento.
A imagem da cebola no prego acompanhou-me durante muito tempo. Persistiu em mim como exemplo acabado do atraso social e cultural de que Portugal padecia, e que era urgente ultrapassar. E, na verdade, o desenvolvimento que o país conheceu com a integração europeia e a subida do nível de escolaridade dissiparam um pouco a perceção das debilidades sociais, económicas e culturais da população portuguesa.
Porém, constato hoje, 30 anos volvidos, que a evolução das mentalidades foi escassa. Diariamente observamos as mais variadas personagens a julgarem que todo o tipo de dificuldades se pode resolver espetando uma cebola no prego. O importante é dissimular os problemas, encontrando bodes expiatórios e soluções ilusórias.
Enfrentar os problemas de frente e tentar corrigi-los na origem, procurar soluções efetivas e prevenir novos dissabores, punir quem realmente errou e evitar reincidências... Tudo isto parece estranho a uma mentalidade que tarda em se desarreigar da sociedade portuguesa. Face às adversidades, há a tendência para criar manobras de diversão, fugir ao cerne da questão, enjeitar culpas próprias, apontar o dedo ao outro (de preferência alguém com visibilidade pública) e contemporizar perante o que está efetivamente mal.
E muitas vezes o que está mal resulta, justamente, do laxismo e irresponsabilidade com que são encarados os problemas. Um exemplo disso foi a forma temerária e negligente como foi celebrado o Natal no auge da pandemia. O princípio da responsabilidade individual não vingou, prevalecendo a mentalidade da cebola no prego. Ora, já é tempo de acabar com a obsessão nacional de arranjar bodes expiatórios...
Reitor da Universidade do Porto