Quando na cidade do Porto se juntam doenças, falta de habitação, temperaturas quase negativas e enxurradas, o resultado é uma espécie de revolução dos sem-abrigo a montar tendas para combater o frio.
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Ludmila Cotilo, 40 anos, três filhos - 18, 12 e 4 anos - vítima de violência doméstica, com depressão, epilepsia e HIV (SIDA), anda de cadeira de rodas por causa das dores da ciática na perna direita e de uma hérnia cervical na coluna. Está a viver numa tenda erguida num túnel escuro e ventoso a meia dúzia de metros do Hospital Joaquim Urbano, perto do Campo 24 de Agosto, na zona do Bonfim, Campanhã.
Ludmila pede cobertores, porque diz que o frio é demasiado para aguentar na rua. "Eu sinto muito frio. Tenho de estar sempre a pedir cobertores, não consigo lidar com o frio. Tenho que me agarrar a ele [ao Cândido, o namorado], porque ele é mais quente que eu", conta, explicando que os cobertores que a Proteção Civil deu não são suficientes para enfrentar o frio gélido. O túnel foi a escolha para montar a tenda e fugir às enxurradas registadas dia 7 de janeiro, explicou.
Cândido Barros, 33 anos, antigo carpinteiro de cofragem, e Ludmila Cotilo namoram há quatro anos e vivem na rua, enquanto esperam por uma vaga no Hospital Joaquim Urbano.
"Quando fico sozinha na tenda tenho receio que alguém me venha fazer mal, me venha violar, ou me bater. Sempre tive receio de estar a viver na rua. Eu tenho muito medo, posso ter a idade que tenho, mas estou muito frágil, sofri muito na vida", confessa, afirmando que teve de ser ela a sair de casa depois de ter sido vítima de violência doméstica.
Cândido confessa que está a ser "muito difícil" viver numa tenda com apenas três cobertores para combater o frio que aperta à noite no túnel negro. "Tremo de frio durante a noite", admite Cândido.
Ludmila e Cândido viveram durante cerca de um ano, no período da pandemia, no Hospital Joaquim Urbano, depois alugaram uma casa em São Pedro da Cova, no concelho de Gondomar (Porto), a pagar 350 euros, mas a senhoria aumentou a renda para 500 euros por mês e o casal ficou desalojado e à mercê dos 189 euros de Rendimento Social de Inserção (RSI).
"Acabámos na rua, mas o meu sonho é ter uma casa, sair da rua, e ter condições para ter os meus filhos de volta", resumiu sentada na cadeira de rodas, pedindo mais cobertores e roupa de inverno, porque, confessa, o frio é demasiado para aguentar na rua.
Ana Paula Duarte, 57 anos, Heitor Moreira, 48 anos, e a cadela Nini também estão a morar numa tenda, junto a um edifício desativado na Rua Alferes Malheiro, junto à Trindade e à Avenida dos Aliados.
De acordo com a Câmara do Porto, o plano de contingência para as pessoas em situação de sem-abrigo "só é ativado com temperaturas mínimas abaixo dos 3ºC, durante três dias consecutivos".
"Estamos a morar na tenda há cinco meses (...). De manhã quando venho cá fora despejar o penico ou deitar o lixo, se o frio for muito como é, de dois três graus às seis da manhã, congela-me as mãos e não consigo mexê-las", conta a mulher de olhos verdes. "Tenho três edredons e um cobertor de lã para me cobrir", conta, enquanto dá colo à sua Nini, de cor amarelo claro.
"Fui mãe, trabalhei, fui feliz na infância e na adolescência, mas evidentemente gostava de ter uma casa. Já estou na idade disso. Isto é temporário, mas eles na Domus Social [empresa da Câmara do Porto], foram tão incorretos comigo e que acho que me deviam dar uma casa. Eu já estou quase nos 60 anos. Custa. O processo, acho que está parado, as assistentes sociais estão a ver o que se passa", relatou Ana Paula, cujo sonho é ter uma casinha.
Hermínio Guedes, 46 anos, vive numa tenda, de cor azul-marinho, no bairro das Fontainhas. Montou-a debaixo dum viaduto, que o protegeu das chuvas torrenciais que assolaram o Porto a 7 de janeiro e onde se resguarda do frio.
Faz as necessidades fisiológicas numa lata a que chama de casa de banho, cozinha massa esparguete com cavala em lata e uns alhos picados numa panela de inox aquecida na botija de gás. Nas noites geladas aquece-se com seis cobertores que lhe foram dados por solidariedade e bebe vinho aquecido na botija. O sonho de Hermínio Guedes era ter uma casa.
Perdeu uma perna aos 17 anos, num acidente de mota. Perdeu os pais. Perdeu um apartamento. Viu a esposa morrer há um ano, mas não perdeu a aliança de ouro no dedo anelar, nem as saudades da sua amada Maria Del Carmo Martinez.
Hermínio Guedes, um homem com cerca de 1.80 metro, que se move com a ajuda de duas muletas, critica a Câmara do Porto por não ativar o plano de contingência contra o frio.
"Se puderem enterrar mais as pessoas, enterram. A Câmara não está a fazer nadinha", desabafa, olhando para o Rio Douro, enquanto fuma, triste, um cigarro.