Isabel Costa pensou que ia morrer queimada, "como morreram dezenas em Pedrógão", no fogo de 2017. Já tinha feito várias vezes o trajeto entre Loure, Albergaria, e Aveiro para tirar duas dezenas de turistas e animais do seu "Vale da Silva Villas", um alojamento local escondido na natureza e que na madrugada de ontem ficou cercado pelas chamas.
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Cerca das cinco da manhã, ao ver o fogo no horizonte, Isabel e a família acordaram portugueses e estrangeiros e, "em meia hora", conseguiram levá-los do local, "sem qualquer ajuda das autoridades", lamenta. Foi na última viagem de regresso a casa, onde o marido e os dois filhos apagavam as chamas à mangueira, que viu a morte "várias vezes no caminho", numa fuga para a frente com o fogo atrás. Perdeu dois bungalows, mas podia ter ficado sem nada. "Tenho uma estrela que olha por mim", diz, ao apontar para uma botija de gás que só não rebentou porque foi regada por um depósito de água ao lado furado por uma fagulha.
O "diabo" foi visto de cima
Só ontem, às 18 horas, foi extinta a última frente ativa dos fogos que desde anteontem transformaram Albergaria e Águeda, concelhos vizinhos do distrito de Aveiro, num "inferno". O "diabo", ou pelo menos um deles, foi visto de cima. Terá sido o piloto de um helicóptero que combatia um fogo na zona de Águeda, que viu anteontem o incendiário, de 64 anos, detido pela GNR. O JN sabe que o suspeito ainda tentou fugir de carro, mas o héli perseguiu-o até obter elementos que o identificassem.
"Fogo posto" não é surpresa para os autarcas de Albergaria e Águeda. E isso mesmo foi ontem transmitido por Jorge Almeida ao presidente da República, quando Marcelo Rebelo de Sousa lhe telefonou ao final da manhã, para saber como estava a situação em Águeda, tal como o fez para António Loureiro, relativamente a Albergaria.
As chamas, que levaram mais de 700 bombeiros (cinco sofreram ferimentos ligeiros), centena e meia de viaturas e sete meios aéreos para os dois municípios, foram iniciadas em locais estratégicos e num espaço de minutos. O resto fez o vento, que empurrou as chamas para relatos de terror.
Só em Albergaria, mais de 40 pessoas tiveram de ser retiradas. Desde 18 jovens com deficiência da Associação "Mão Amiga", a 26 crianças e adultos de um acampamento em Frossos. Em Serém, ninguém dormiu. Muitas famílias foram forçadas a sair de casa durante horas. Isaura Ferreira tem 71 anos, mas não parece. Não tivesse a genica que não esconde e na madrugada de ontem podia não ter aguentado ver o fogo lamber-lhe o quintal. "Nunca vi uma coisa assim". Também em Serém, junto ao IC2, a casa de Manuela Rodrigues, 52 anos, era um "caso perdido" para a a GNR devido ao "campo de futebol de paletes" de uma empresa que ladeia a habitação e que ardiam. Foi salva pelos bombeiros. "Já me estava a ver ir para França viver com a minha filha emigrante", confessa Manuela.
Mais 48 horas de risco
Na Rua do Ribeiro, em Frossos, uma viela sem saída, o fogo não deixou, durante muito tempo, ver um palmo à frente do nariz. Carina Sousa, 30 anos, olha para a terra queimada do outro lado da rua e abana a cabeça. Ela e a família recusaram fugir e lutaram com o que tinham ao lado dos bombeiros. Salvaram a casa, mas não evitaram o cenário negro.
O perímetro de área ardida era ontem de 2000 hectares, revelou o edil de Albergaria. "Uma área extensa, com muito ainda para arder no meio, algo fácil de acontecer nas próximas 48 horas devido ao vento forte", alerta António Loureiro.