Museu grava memórias de quem viveu de uma agricultura em que era preciso produzir primeiro para o senhorio e depois para alimentar a família.
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O Museu de Agricultura de Fermentões está a gravar as memórias dos últimos lavradores de Guimarães. O objetivo é fazer um arquivo que permita às gerações futuras saber como era o quotidiano de quem vivia da terra ao longo do século XX. O projeto resulta de uma parceria entre a Casa do Povo de Fermentões, proprietária do Museu, e a Casa de Sarmento, um centro de estudos de património da Universidade do Minho, apoiado pelo Município de Guimarães e pela Sociedade Martins Sarmento.
"Graças a Deus, nunca passei fome", diz Maria Neves, de 85 anos, logo no arranque da entrevista, quando lhe perguntam sobre as dificuldades de viver da agricultura. As carências marcam a experiência de vida de todos os seis entrevistados. "Na minha infância, comia caldo de couves e arroz com feijões", esclarece. A carne era um luxo e a "bicharada", quando havia, era para vender. Maria não andou na escola e o irmão "aprendeu a ler na França".
Com 12 anos Maria já fazia a fornada do pão. Uma enorme responsabilidade para uma menina, "se não corria bem levava uma lambada, era assim". Os pais de Maria faziam terras de outros, primeiro como caseiros de uma quinta, mais tarde como jornaleiros. "Comecei a andar com os homens no trabalho desde muito cedo", lembra. O ciclo do linho - colher, lavar no rio, escorrer, levar ao moinho, espadar - era muito pesado. "Aos 14 anos, fui servir para fora", como se dizia das raparigas que trabalhavam como empregadas domésticas em casa de gente rica. Ganhava-se comida e dormida e pouco mais, mas fugia-se à dureza do campo.
"O linho não se vendia, cada um trabalhava o seu", explica. Em casa de Maria havia um tear e foi nele que aprendeu a tecer. Do linho faziam-se até os sacos para colocar os cereais para pagar a renda aos senhorios, "porque naquele tempo não havia plástico".
O vinho era três partes para o senhorio e ainda 12 carros de pão, 20 rasas (medida de dez litros) de feijão, 40 rasas de centeio, era a renda da quinta, "se não tivesse porque o ano andava mau, tinha que pagar em dinheiro", conta Miguel Castro com a voz embargada. "Os caseiros tinham que se sujeitar, porque tinham nove ou dez filhos para alimentar", acrescenta. Miguel tem 80 anos e juntamente com a esposa Ana, de 78 anos, fugiu do ciclo da pobreza a que parecia condenado à partida, mas não consegue esconder a mágoa. "Sulfatava-se as videiras do senhorio e, para tirar o sulfato das mãos, pedia-se autorização para apanhar um limão do chão", recorda com tristeza.
Com um pé na industria
Miguel e Ana foram "fabricados na fábrica", uma expressão do sociólogo vimaranense Esser Jorge, para caracterizar os lavradores que emprestaram a sua mão de obra à industria sem perder a ligação à terra. Trabalharam durante dezenas de anos na histórica têxtil Cavalinho, sem nunca deixarem a lavoura. "Deixava molhos de hortaliça na portaria para as mulheres da fábrica, o segurança recolhia o dinheiro", afirma com orgulho.
O casal reformado continua a cultivar uma quinta de oito mil m2 que adquiriu às portas de Guimarães. Já lá vai o tempo em que vendiam couves pencas de seis quilos no mercado. "Agora é só para nós, para os filhos e para dar aos amigos , mas mesmo assim, este ano ainda tirei duas toneladas de batatas."
Maria, Ana e Miguel são os últimos guardiões de recordações de um tempo em que a terra se lavrava com juntas de bois e "em que a desfolhada era um dia de festa porque havia água-pé e sardinhas e o povo matava a fome".