Em Campo, Valongo, toda a gente tem alguém que trabalhou ou ainda trabalha nas minas de extração de lousa. Ou que fez vida a trabalhar esta matéria-prima única, que todos definem com "caráter próprio".
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Histórias de um passado recente feito de muita miséria e dificuldade, em que grande parte das crianças, que não seguiam os estudos, acabavam a trabalhar nas minas. Histórias feitas a pulso, mas também de superação. De quem continua a preservar o legado da História, mas que, ao mesmo tempo, tem o arrojo de ir projetando o futuro. Até porque o futuro de Campo, tal como aconteceu no passado, continuará a passar pela lousa.
Fernando e Zélia
Irmãos seguem negócio do pai
Cinquenta e cinco anos depois de Manuel Carvalho da Silva ter fundado a empresa homónima, MCS, são os filhos Zélia Ferreira, 52 anos, e Joaquim Tavares, 54, que mantêm a fábrica de produção de lousas escolares, em Campo, Valongo.
Um negócio "cíclico, feito de altos e baixos, em que 98% do que é produzido é para exportação", aponta Fernando. Sobretudo, "para os EUA, França, Alemanha, Holanda, Suíça e Itália", refere Zélia, sublinhando que "uma lousa faz a vez de milhões de sebentas".
E acrescenta: "Já não falo só de uma falta de estratégia do país, mas de Valongo que não promove o uso da lousa nas escolas".
É que as lousas produzidas pela MCS têm a particularidade de não serem todas lisas. Há umas com linhas, para as crianças aprenderem a escrever, e outras quadriculadas, para facilitar as contas.
E não falta trabalho à Manuel Carvalho da Silva, Lda, que labora com 14 funcionários: chegam a produzir 4500/5000 lousas escolares por dia; um milhão por ano. E, aos poucos, conta Zélia, começam também "a entrar no setor da restauração", com objetos como marcadores e tábuas, feitos de lousa, "devidamente certificados, que inclusive podem ir à máquina de lavar".
José Marques
Mal saiu da escola foi para a fábrica
Aos 14 anos, José Marques, natural de Campo, Valongo, não quis estudar mais e, naquela altura, não lhe restou outra alternativa senão ir para a Empresa das Lousas de Valongo, onde já trabalhava o pai e um tio.
Atualmente, aos 62 anos, José é o funcionário mais antigo da empresa. O trabalhador, que é serralheiro, é o responsável pela manutenção de todas as máquinas, além de ter criado, há dois anos, uma especificamente para "polimento".
"É uma coisa única! Não há igual!", diz, orgulhoso. E logo acrescenta: "Adoro aquilo que faço, mas a gente nunca sabe tudo, está sempre a aprender".
Homem de trato afável, José conta que nenhum dos dois filhos lhe seguiram as pisadas, mas confessa que sente que influenciou o filho Pedro, 32 anos, quando este decidiu seguir Engenharia Mecânica. "Aos três anos, já vinha comigo de mão dada para a fábrica".
David Barbosa
Trabalho que "pagava certinho"
David Barbosa, 36 anos, é rachador na Empresa das Lousas de Valongo. Dedica-se a separar a pedra pelas suas diferentes camadas, com uma técnica milimétrica, de palmeta e maço nas mãos, que aprendeu "vendo os mais antigos a fazer". No trabalho de extração da lousa, este é dos raros setores onde as máquinas ainda não entraram. Uma realidade que durará pouco tempo.
De acordo com Teotónio Pereira, administrador da empresa, "em breve vai chegar uma máquina para fazer este trabalho, em que se tentará desperdiçar menos pedra".
Mas, assegura: "Nenhum destes funcionários perderá o trabalho. Não só porque há pedras, de menor dimensão, que a máquina não conseguirá rachar e, porque as máquinas também precisam de ser manuseadas".
No início do século XX, chegaram a ser mil os funcionários da Empresa Lousas de Valongo. Atualmente são 40. E dada a necessidade de continuarem a explorar parte da pedreira que fica por baixo da empresa, o edifício renascerá "ao lado" daquele que existe.
Há 11 anos, "em plena crise, não tinha trabalho e o meu sogro, que também aqui trabalhava, arranjou-me este emprego, ainda por cima pagavam certinho", rematou David.
Paula Machado
Sentir a mágoa das pessoas
Reunir elementos que servissem, há mais de 20 anos, de base à criação do Museu da Lousa, em Campo, Valongo, foi "um processo difícil". "Constantemente era sentir a mágoa nas pessoas", confessou ao JN a museóloga Paula Machado.
Numa vila "onde toda a gente tem alguém na família que trabalhou ou ainda trabalha nas minas", a investigação tornou-se num desfiar de emoções, que muitos preferiam esquecer.
Paula Machado recorda, inclusive, que, durante a leitura de vários registos sobre o trabalho precário nas minas, houve momentos de "autênticos murros no estômago", onde foi preciso "ir apanhar ar fresco na cara".
Como o relato de uma criança que descreveu que "o trabalho na mina era tão duro que amarrava as mãos à carrela, com uma corda, para a conseguir transportar".
Dos testemunhos, a investigadora ouviu também falar dos trabalhadores que "morreram do pó ou do mal da pedra" (silicose).
Na exposição "A história desconhecida da pedra negra de Valongo", patente no Museu da Lousa, estão descritas todas estas vivências. Com a crueza da realidade.
Mas também existe a recriação de uma antiga casa de um mineiro, muito visitada pelas escolas, onde, segundo a museóloga, "uma das principais curiosidades das crianças é saber onde está a casa de banho".
Pormeores
Campas
No século XIX, com a instauração do Liberalismo e a proibição dos enterramentos dentro das igrejas, a lousa foi então considerada "propríssima para os monumentos da morte".
Lastro para navios
A colónia inglesa residente na Invicta, ligada ao comércio de vinho do Porto, precisava de lastro para os navios que levavam esta carga para Inglaterra e a lousa era ideal, pois era muito pesada e pouco volumosa.
Patelas de jogo
Terão sido os romanos os primeiros a darem uso à lousa. Usavam esta matéria-prima para pesos, testos e até para patelas de jogo.