Velocidade, acidentes e falta de passeios são principais falhas apontadas. Estrada Nacional 12, que atravessa Porto, Maia, Matosinhos e Gondomar, espera há anos por obras.
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Nasceu no século XIX para controlar a entrada e saída de mercadorias no Porto, mas hoje está transformada num tormento diário para quem vive ou trabalha na região. Ao longo dos 17 quilómetros da Estrada da Circunvalação, que atravessa Matosinhos, Maia, Porto e Gondomar, há relatos de acidentes, excesso de velocidade, queixas sobre falta de acessibilidades e críticas aos percursos pedonais. Com um programa metropolitano criado há sete anos e que teima em não sair da gaveta, automobilistas e peões criticam a falta de intervenção.
Da Anémona à AEP
Com o mar como fundo, junto à rotunda da Anémona, em Matosinhos, o panorama nada faz adivinhar que, cerca de três quilómetros depois, na Rotunda AEP, o trânsito é digno de deixar qualquer um com os nervos em franja. Até lá, as críticas dos automobilistas circunscrevem-se aos semáforos e aos peões que não atravessam na passadeira. Quem escolhe a zona para passear, por sua vez, critica o excesso de velocidade e as bruscas ultrapassagens.
"Muitas vezes, vou junto à berma da estrada e tenho de desviar-me para os carros passarem. Até pela direita ultrapassam", revela José Oliveira, de 69 anos, que acredita que, se existissem passeios, a atitude dos condutores era diferente.
Débora Monteiro, de 23 anos, junto ao Parque da Cidade do Porto, diz que os condutores "se queixam muito dos semáforos" e apontam esse como o principal motivo do trânsito que lá se acumula a partir das 17 horas. Para José Oliveira, a justificação é óbvia: "Há uma falta de civismo muito grande. O peão e o condutor estão a borrifar-se um para o outro".
Perto da Rotunda AEP, onde o tráfego intenso é quase sempre constante, está Maria Moreira, de 76 anos, à espera do autocarro, junto à berma da estrada. "Não há condições nenhumas. Quando chove, é uma desgraça", diz, criticando a demora dos autocarros, também prejudicados pelo trânsito daquela zona.
Tormento até à Areosa
Em direção ao Hospital de S. João, no Porto, o tormento mantém-se e, em alguns casos, acentua-se. É o que acontece no cruzamento da Circunvalação com a Rua do Amial e no troço do hospital até à Areosa.
"Aqui há movimento a toda a hora. É terrível. Tanto de manhã como ao final da tarde, principalmente a partir das 17.30 horas" conta Hélder Santos, de 40 anos. Trabalha na Churrasqueira do Amial e vai sempre a pé para o trabalho. Mora no Monte dos Burgos, mas não arrisca a caminhar pela Circunvalação.
"Acaba por ser um bocado perigoso, então venho por um caminho, à volta, onde não tem trânsito. Os condutores abusam um bocadinho na velocidade, nesta parte da Circunvalação. Ainda há dias capotou um carro na curva a seguir aos semáforos, em direção a Matosinhos", acrescenta, apontando para as barreiras que o restaurante instalou à porta, precisamente, para que a entrada do estabelecimento não seja destruída num acidente.
Ainda assim, "estão sempre a ser substituídas": "a última vez foi há um mês".
A sair de uma consulta no Hospital de S. João, Fátima Ferreira, de 68 anos, finta os carros para chegar à farmácia, do outro lado da estrada. Não é a única a fazê-lo. De tanto se utilizar o separador central como forma de atravessamento, por entre as árvores, a vegetação já morreu. O principal motivo é a distância entre passadeiras.
"As passadeiras estão muito longe umas das outras. Atravessei aqui para não ter de ir lá abaixo e voltar", justifica Fátima, que vive em Pedrouços, na Maia, não muito longe dali. Mesmo com a estrada livre, atravessou a correr. "Tenho medo. E ainda aqui há tempos houve um acidente numa passadeira. Mas foi a senhora que teve culpa. Atravessou no vermelho", lamenta, admitindo que "às vezes, as pessoas facilitam".
Na Areosa, o maior problema é "quem estaciona onde não devia", nota Sandra Neto, de 47 anos, de Gondomar. Mas por toda a Circunvalação "há muito trânsito" e esse sim, aponta, é o maior entrave à circulação.
A única solução para diminuir o trânsito, observa Sandra, do interior do seu quiosque junto à Peixaria da Areosa, é "tirar os carros da estrada". Uma solução que só terá sucesso "se o metro for até lá", diz. "Se tivesse metro, nunca viria de carro", garante, indicando que para fazer o percurso de autocarro, tem de apanhar dois.
Nós de acesso perigosos
Nos restantes cinco quilómetros, rumo ao Freixo, entre entradas e saídas para a VCI e outras tantas para as autoestradas, a "tradicional" Circunvalação desaparece e, no meio de tantos nós de acesso, já se registaram aparatosos acidentes.
Marisa Malta, de 32 anos, alerta precisamente para o perigo da estrada depois da saída do mercado abastecedor. "Antes, onde se pode fazer inversão de marcha, um carro que vinha do Freixo, se calhar com alguma velocidade, bateu noutro que ia mudar de direção e desfê-lo", conta.
A partir da ETAR de Rio Tinto, em Gondomar, entre curvas e contracurvas, casas e vegetação, ninguém diria que o caminho ainda pertence à mesma estrada. O que, para Albano Saraiva, de 77 anos, que caminha muito por ali, só traz benefícios.
"Até tem muito movimento. Mas tem passeio. Quem não quiser andar pelo parque, anda por aqui muito bem também. Para mim está bem. Não há necessidade de mudar", observa o morador no Cerco do Porto, de 77 anos, junto à Rotunda do Freixo, zona até onde costuma caminhar. A única coisa que o portuense tem a apontar é a falta de manutenção de alguns candeeiros, junto ao Parque Oriental: "Estão há uns bons meses apagados".
Porto: À espera de acordo com o Estado
No processo de descentralização, diz a Câmara do Porto, prevê-se "a transferência das competências de gestão de algumas estradas da Rede Nacional Rodoviária para os municípios, onde está incluída" a Circunvalação. Mas "a transferência da titularidade dos troços e equipamentos para domínio público municipal requer a mutação dominial por acordo entre a Infraestruturas de Portugal (IP) e o respetivo município". Além de ainda não ter sido assinado, desconhecem-se tanto "os termos em que será proposto" como "o envelope financeiro que lhe será adstrito", alerta.
Maia: Câmara concluiu transferência
A Circunvalação "está desclassificada desde o Plano Rodoviário Nacional de 2000", afirma a Câmara da Maia. Explicando que, após a desclassificação de uma estrada, é necessária a celebração de um acordo para transferir os terrenos para os municípios, aquela Autarquia diz ter sido a única das quatro "que, em 2004", concluiu esse passo do processo. À Maia pertencem 1,2 quilómetros de estrada. Do Programa Metropolitano para a Qualificação Urbana da Circunvalação, a Autarquia diz que "falta dar sequência aos estudos interrompidos em 2016" e que a Área Metropolitana do Porto (AMP) determine a sua calendarização.
Gondomar: Valor proposto é "pornográfico"
A Câmara de Gondomar diz ter-se reunido, no mandato anterior, com a IP, afirmando que a tutela propôs um valor de cinco mil euros por quilómetro para a transferência. No entendimento do autarca Marco Martins, o valor é "pornográfico" e "não pode ser aceite". A Autarquia diz ainda que Gondomar é o município "que mais passeios tem na EN12" e ainda que, "foram introduzidas melhorias na zona da Areosa, com deslocação de paragens de autocarro".
Matosinhos e AMP: Projeto preso por financiamento
A Câmara de Matosinhos remeteu esclarecimentos para a IP que, por sua vez, não respondeu em tempo útil. A AMP diz que o projeto foi desenvolvido "em conjunto com os quatro municípios atravessados pela EN12", mas "foi condicionado por várias questões financeiras". A entidade está a desenvolver um trabalho de intervenção com arte urbana, estando "os armários da EDP entre as zonas da Ranha e da Areosa" pintados com graffiti.
"Reperfilar toda a via"
Por Paula Teles, presidente do Instituto de Cidades e Vilas com Mobilidade
"Entendo que a Circunvalação deve ter um conceito forte, bem musculado, e integrado em toda a sua extensão. Na minha perspetiva, este será o grande desafio. E não pensarmos agora soluções para cada troço. É claro que estes três troços têm algumas especificidades, mas isso será o trabalho das preocupações seguintes na elaboração dos projetos respetivos.
Hoje, perante os novos desafios do planeta e da vida das cidades, devemos transformá-la num boulevard verde, onde coexistam os modos de mobilidade automóvel com novos percursos cicláveis, grandes passeios e, onde o transporte público deveria assumir-se como o modo principal de mobilidade em todo o eixo, capaz de permitir a intermodalidade nos nós criados, como forma inequívoca de uma forte irrigação dos tecidos adjacentes.
Reperfilar toda a via para lhe tirar o caráter de estrada e de circunvalação, transformando-a numa rua vivida, verde, segura e inclusiva, será o grande desafio. É claro que o seu desenho terá de ser suportado numa estratégia de mobilidade, mas hoje será muito mais que isso. Precisamos de a estudar urbanisticamente, contrariando ainda as atuais tendências, nalguns troços, de estradas assumidas, pelo aparecimento de licenciamentos que não são compatíveis com este pensamento. Esta deveria assumir um papel de usos mistos, onde a habitação terá de ser principal com o comércio e serviços de proximidade, na sequência das cidades 15 minutos que a Europa está a adotar face à pandemia.
A utilização atual de um canal onde assenta a logística e o comércio de médias e grandes superfícies, contraria todo o conceito que esta deveria absorver, numa perspetiva de anulação de fronteira e rotura urbana.
Em síntese, e de forma geral, toda ela apresenta incapacidade de infraestrutura para os modos suaves: andar a pé e de bicicleta. Por exemplo, o troço intermédio tem muita atividade na estrada, sem condições mínimas para a caminhabilidade .
Assim, exige-se um novo conceito de mobilidade urbana sustentável assente numa política urbanística de usos mistos nos quarteirões envolventes, capazes de desenharem novas pequenas cidades absorvendo todo o caráter de costas e fronteira que hoje possui.
Como fazer? Precisamos que os presidentes das Câmaras em causa se sentem à mesa, arregacem as mangas e iniciem um trabalho conjunto de necessidade premente coletiva! E sem medo!"